O gênero de 'Khármides'

Khármides

Sou Khármides. És Khármides. É Khármides. Somos Khármides. Sois Khármides. São Khármides. Sobre Khármides. Khármides não está em vida, ou melhor, está a ponto de morrer. Seus últimos pensamentos são lacunosos e por isso precisam ser completados. É mulher ou homem? Decidiu suicidar-se ou foram as circunstâncias? Cada segundo quer lhe parecer um século. Nesses séculos em que morre, não pode desejar senão o fim do sofrimento e o dissipar da dor. Vive os últimos momentos como um milênio só seu e odeia cada dobra desse tempo. Morre e se faz perseguir pela idéia da morte; morre duplamente, acertando contas duplamente. Mas o que é esse tal gênero de Khármides?
A morte de um jovem ou de uma jovem são sempre chocantes. Porque ela mostra que o mundo, esse conjunto de infinitas possibilidades, se fecha tão rápido quanto se abre e o lugar do adolescente é o lugar da confusão, do caos, da mudança. Depositamos no lugar do adolescente toda a esperança de renovação, nos esquecendo que todo e qualquer lugar está aberto à mudança. 'Khármides' é esse gênero de mudança de foco permanente, revolucionário. Beira o déficit de atenção. Mas 'Khármides' também é o desatento, o estúpido e dogmático jovem que se crê a novidade, a novidade do lugar. O lugar do jovem, ou o tópos do jovem se preferirdes, e a juventude de qualquer lugar. E 'Khármides' ainda poderia ser o gênero dos prefácios infinitos ou dos sumários ou dos índices remissivos. 'Khármides' é o lugar para se estar, quando o sábio vier indagar sobre o que é a temperança, porque 'Khármides' possui saídas por todas as partes. 'Khármides', que está prestes a morrer, no entanto, tem sua cicuta nessa liberdade.
Resolve morrer pensando numa promoção de calçados, na feira de domingo, no livro que não leu, nos que leu, num poema que não faz muito sentido. Pensa em últimas frases para dizer, epitáfios, pensa em bons dias para se morrer, em suicídio. Segue sua morte, como quem seguisse sua vida, sabe que nunca estará acabada a série de tarefas a cumprir antes de ir-se. Tem pouco tempo, e concomitantemente não sabe aproveitá-lo e nem deseja sabê-lo. Apetece-lhe perder os segundos sentindo esvair-se. Medita maneiras de continuar entre nós - pressupondo que sejamos nós os vivos. Diante da indecisão, continua agindo como nós: hesita e tarda. Uma coisa porém é certa: não se pode falecer sem se decidir sobre o próprio gênero e isso não hemos de perdoar nem nos escritores, nem nos mortos. Pois se algo é uma planta, que semeie e morra, não a velaremos; se é uma pedra, que se desgaste ou exploda, não a velaremos; se for um homem, se for mulher, contudo, desejamos saber se semeia, se desgasta, se explode e quando morre. Estamos curiosos para vê-lo morto.




Premissas para morrer

Morrer não é simples. Khármides compreendeu isso, quando decidiu abandonar o sono profundo em que estava. Como um personagem que ainda não existe despertar. Acordar pela primeira vez para viver; e no ato mesmo de nascimento, como quem acordasse pela última vez, ver-se morto desde o início. Morrer não é simples e, neste caso, vós precisais vos pôr no lugar deste personagem, nascido sem gênero - em nenhum sentido - e em busca de seu próprio definiens. Não deve ser fácil acordar no mundo, núperchegado, com a missão de explicar a todos quem se é. Mas Khármides precisa fazê-lo. E para ajudar o personagem, suponhamos, primeiramente, que seja um ser humano e que, para se livrar rapidamente das penas e tarefas árduas da vida, deseja se suicidar com ânsia. Vede comigo essa pessoa: o suicídio exala de seu ser delicado e batido pelo tempo e pela coragem intestina. Vede comigo quão sofredora é: se derruba um prato ao chão quase grita; é capaz de passar horas olhando tristemente um teto; não se diverte na presença da alegria; não se deixa contagiar pela morte, pela pobreza ou pelo amor; anda irritadiça com seu próprio gato, busca em vão se alienar cultivando uma paixão exagerada pela limpeza, magreza e beleza. Está atônita agora mesmo. Vós a vedes? Diante do espelho nasceu-lhe uma espinha, pequena e suave, um detalhe, um pequeno testemunho de uma imperfeição passageira. Chora. Cutuca sofregamente a testa, a bochecha, estende a língua. Se crê doente. E nos cremos doentes em observá-la tão de perto. Quando a ouvimos murmurar uma melodia já não sabemos se nós a murmuramos, se nós a conhecemos, se está dentro de nossa cabeça.
Suponhamos, por amor à literatura, que Khármides seja um rebatedor de luz num estúdio de cinema em São Paulo, ou Marrakesh. Num sábado à noite não há muito que fazer: o destino de Khármides está selado. Quando as filmagens recomeçarem, na semana seguinte, então ele será utilizado. Enquanto isso, ele não pensa em nada, não reflete sobre nada. Mas está preparado para rebater a luz a qualquer momento. Isso é o que esperamos dele. Observai com mais calma esse objeto. Não basta imaginá-lo. Vede de fato o que é o rebatedor de luz em um estúdio de cinema. Percebei que graças a ele a luz se realça. Estamos muito contentes com Khármides.

Supondo que essa pessoa queira morrer

Se o corpo doer demais, talvez eu desista, pensou. Se a boca ficar roxa e secar, talvez eu desista; não tenho coragem para me matar, pensou. Abriu o armário, pela última vez, e olhou seu livros, que disputavam espaço com jaquetas e camisetas. Quis distrair a mente com uma veleidade intelectual. Sobre sua escrivaninha estavam três livros: Banquete, Elogio da Loucura e Dom Casmurro. Não pensava sobre esses três livros quando decidiu falecer. Não sabe bem porque um livro cruzaria sua mente agora. Nem como nem qual. E de fato pensava num dicionário velho, que vivia escondido à prateleira... Não sabemos se essa versão de Khármides é rica ou pobre e se pode e sabe ler e se o faria. Esta versão de Khármides é apenas uma provocação minha. Todas são.
Supondo que eu seja um animal ou um vegetal - é o que Khármides pensava olhando-se, mais uma vez, ao espelho - bem, o que me impediria de ser um vegetal neste exato segundo, e acabar com essa história e estar como ligado à terra de maneira umbilical? O que me impede de me tornar mesmo um mineral? E se eu quisesse ser um cão e latir e fornicar devidamente? Um hipopótamo? Um jacaré, um jaguar, uma capivara?
Assim pensando deixamos Khármides. E pedimos que vos coloqueis em seu lugar. Mais uma vez.
O que significa “gênero”?  Está-se falando de “gênos”? Não estaremos adentrando a terrível discussão filosófica acerca de como classificamos o mundo e suas fantasmagorias? Ou então, menos pretensioso, o livro tratará da identidade sexual de Kharmides. Ou da classificação ontológica de seu organismo? Falar-se-á das preferências literárias do protagonista, qual é o gênero de “O Gênero de Kharmides”? Qual gênero musical mais o agrada? Qual experiência sensorial mais o delicia? Ele realmente existiu? Quem é esse personagem? É ele, sozinho, uma tragédia, uma comédia, uma poesia? Um Homo sapiens?
Por que este livro é tão interessante? Dentre outros motivos, porque ele explora um dos únicos lugares comuns da literatura pátria: o cadáver escritor. Ao lado do da antropofagia (Modernismo Paulista), da pedra estarrecedora (Drummond e Cabral de Melo Neto) e do amor à virago (Guimarães Rosa), eis a treta de estruturas recorrentes em nossa realidade literária, na minha modesta opinião. O Brasil produziu outros lugares comuns, decerto, que são sociológicos, como o homem cordial de Buarque de Holanda, a democracia racial de Freyre. E ainda o mais belo lugar comum tupiniquim, as idéias fora do lugar de Schwarz. Para que servem esses lugares comuns? Seriam meras obsessões culturais e críticas e semipatologias morais expressas em forma e matéria espirituais e comportamentais? Não, leitor, me parece que os lugares comuns cumprem múltiplos papéis, dentre os quais, o mais transcendental certamente, é mostrar a vastidão da vivência humana com lapidação de pedra, com estilização de máscara africana. O reconhecimento dos lugares comuns é uma barragem contra a pasteurização cultural, eis o paradoxo, e funciona como defesa não somente nacional, mas, sublimado, se torna objeto de uso espiritual comunicável e comunicante, poroso, modelar e modelado. Afinal, a pedra posta no meio do século latinoamericano não proveio de Dante Alighieri? Trata-se de lugares relativamente fixos e devotados a um certo coletivo cultural; eles dão estabilidade e morosidade, são o motor primeiro, o leito do rio de uma cultura. Ouro de aluvião que dá no Tamanduateí ou no Tejo, entretanto ouro – e valioso todures.
Claro que um lugar comum só se confirma pela tradição e pela mímesis – façamo-lo à moda de Curtius!; ora, sendo a mímesis literária no Brasil curta, fica comum o lugar pela tradição que funda, como a própria base de nossa temporalidade, não como lapso de repetições cronometradas. Outrossim, seria difícil imitar o lugar comum de Machado de Assis e de Guimarães Rosa e de Drummond com a maestria desses.
Nem por isso essa trama de coisas diz menos a respeito do caráter universal da vivência tupiniquim. Analisemos cada uma dessas estruturas.
O cadáver escritor. Em primeiro lugar, é o cadáver escritor ou é o escritor cadáver? O que é adjetivo do quê? Pela maneira como conecta adjetivo, pospondo-os, e conhecendo a obra um pouco, temos muitas razões para acreditar que Brás Cubas primeiro é cadáver e depois vem a ser escritor. E a conclusão mais razoável é a mais absurda: ora, tornar-se escritor depois de morto! Desde a dedicatória somos confrontados com um profundo descrédito em relação ao mundo dos vivos, porque não é a outro ser vivo, senão àqueles vermes que se alimentam do corpo morto dos homens, que Brás Cubas e Machado de Assis dedicam a obra. É o morto que cultua a própria morte, na medida em que esse evento – no mais, um banal ser roído por vermes – é fronteiriço. Os vermes transformam a morte de novo em vida. Vida alheia, a que pouco interessa a alma que a animava. Mas, ao contrário do problema que a morte representa para nós – os vivos –, a reciclagem das carnes brascubanas são o evento concreto da libertação daquela vida pregressa e o surgimento do escritor. A morte é um problema para os vivos; a vida não é um problema para os mortos. Essa premissa fundamental da escrita brascubana transforma uma idéia que se tornou banal – o medo da morte – na grande obra de reflexão e liberdade intelectual de que é capaz somente alguém preso a seu tempo e lugar. Aquilo que acompanha a vida atinge um nível proporcional de perfeição – a infinitude da glória, a intensidade dos prazeres, a sublimidade do saber. Porém, o que acompanha a morte não parece ter ponto de começo nem fim; é perfeito de outra forma; para a reflexão e a liberdade, glória, saber e prazer não são um problema. O morto, uma vez absorvido pelo verme e pela terra, desaparece, seu volume não deixa rastro e é como se ele estivesse morto desde sempre, para sempre, sua morte é eterna. Não há lição a ser aprendida com a morte, senão acompanhar-se ao máximo de reflexão e liberdade. Ainda que uma vida qualquer ensine algo sobre o prazer, a glória e o saber. Foi sábio? Pois bem, o que ele ensina? Foi valente? Mas o que enfrentou? Gozou tranquilamente? E do que gozou?
Contudo, uma vez morto, não há lição; mas parecerá necessário enxergar as coisas tal como são, ou esforçar-se para isso, com liberdade e com calma, até a morte – e talvez depois?
Um último elemento chama imediatamente a atenção nesse lugar comum do cadáver escritor: a impossibilidade prática da crítica. Encerrado em seu tempo, neste país escravocrata que sua morte apenas menciona, Brás Cubas, tão roedor post mortem, era um entre muitos no país: pensou e agiu como um rapaz de sua época, de acordo com os valores de sua época e de seu país – que vamos chamar de Rio de Janeiro para melhorar a noção. Seu cadáver é seu duplo, está para a normalidade e efemeridade de sua vida como a excepcionalidade e perenidade da morte; o duplo de Bras Cubas, contudo, é quem está vivo, do ponto de vista da razão: ele é a luminosidade da reflexão, que areja com janelas e com ventos uma casa velha, ao passo que sua vida foi no elemento da obscuridade da estupidez, que acumula leviana seus equívocos. Assim como as memórias do protagonista transformam sua morte em vida, não seria abusivo classificar Brás Cubas como verme. Um verme não se rói a si, mas roeria um outro verme? O que Brás Cubas faz é roer-se como algo exterior a si, com a liberdade e o distanciamento crítico que pareceu impossível enquanto o sujeito era vivo. O argumento parece não oferecer obstáculos. Engano. As memórias, tal como um diário, assim como a digestão normal serve para conservar a vida daquele que consome, o máximo de tempo, servem para conservar a mente. As idéias frescas lhe róem a alma como os vermes lhe róem a carne. A reflexão está diante de algo vivo, o reconhece como vivo, está viva nessa relação; mas não pode deixar de ter, nesse caso, o aroma da morte.
Para nossa decepção, porém, descobrimos no ponto de junção do duplo – cadáver-escritor e bon vivant-dandy – aonde chegamos por último, que não há redenção para a vida de Brás Cubas: nós os leitores somos os únicos objetos da intervenção do morto e talvez o destino de todo o vivo seja acumular levianamente seus equívocos. Deixar-se influenciar por um morto, todavia não seria somente andar a acumular mais um equívoco?
O homem é o verme do homem. Se equivoca quando quer acertar e quando sabe estar errando. Digamos que as possibilidades do erro são maiores. E resolvemos, por um capricho moralizante dos eventos da realidade, chamar ‘erro’ o que ocorrerá provavelmente na maior parte das vezes. Acertar é difícil por exige treino, improviso e reconhecimento. Uma falha em qualquer dos elementos traz o erro – assim como o chamamos acima. Um homem que não sabe amar o que é bom nos outros, pode ser amigo de alguém? Um homem vivendo no elemento do egoísmo mais pueril e irrefletido, pode reconhecer outra pessoa? Parece que o amor poderá convertê-lo e ensinar-lhe a aceder uma verdadeira amizade civilizadora.
O leitor não sabe de que livro estou falando. Provavelmente estou me referindo antes e vagamente ao Banquete, e menos ao Grande sertão: veredas. Diadorim está para Riobaldo como Alcebíades para Sócrates. São antístrofos, análogos. O amor é um seminume que permite a ascensão do homem ao domínio do belo. O amor vai lhe ensinar algo, o amor ao companheiro de batalha, o amor ao mesmo, homem ama homem; mas o amor ao mesmo que de maneira bem orquestrada por Guimarães, vai lhe ensinar que – não – Riobaldo ao amar outro homem, se torna capaz de amar a outrem. E o corpo de Diadorim, seu companheiro de batalha, é a confirmação, como a materialização da própria idéia da amizade. Amar outro ser humano e não querer. Por quê Riobaldo renegava esse amor por outro homem? Não será somente pela moral vigente, sabendo que a moral humana só vige porque admite exceções. Amar outro homem e no mesmo ponto de juntura entre a vida e a morte descobrí-lo mulher. Amar outrem, outro, amar o diferente, aqui, é abandonar o elemento do egoísmo.
Em comum, a epifania na morte.
A epifania no inanimado. Na pedra. A epifania do humano ao estacar junto à pedra, a confirmação da pedra inanimada. A absoluta relevância do absolutamente irrelevante. O eu lírico que frequenta a pedra em diversos poemas drummondianos se transforma: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho” (No meio do caminho); “As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho... Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura” (O Enigma); “E como eu palmilhasse vagamente/ uma estrada de Minas, pedregosa/... A máquina do mundo se entreabriu/ para quem de a romper já se esquivava/... baixei os olhos, incurioso, lasso/... A treva mais estrita já pousara/  sobre a estrada de Minas, pedregosa,/ e a máquina do mundo, repelida” (A Máquina do Mundo).
Primeiro obcecado pela pedra, o segundo prosa-poema obcecado como pedra pelo humano – enigma – e o terceiro, liberado da concretude do animado e do inanimado, obcecado imediatamente pelo enigma do mundo. Uma tríade se desenha, para revelar a verdadeira questão do eu lírico – a questão do enigma do mundo – que segue irrespondido. A questão é a pedra, depois é o humano, o “interceptante”; por último a questão é o próprio caminho do humano.
Vamos recuar ao primeiro poema. Qual é a atitude fundamental ali? Numa expressão mínima, o eu lírico cria o duplo da pedra, a partir de uma circunstância espacial – o “no meio do caminho”. A ‘pedra’ é ‘no-meio-do-caminho’, mediação entre espacial entre as pontas, mediação temporal entre começo e fim. O no-meio-do-caminho, elemento inerte diante da intenção que o curso da vida incorpora, instrumental, é de fato o próprio curso da vida, o imediato para a consciência que deambula. Caminhar é uma ação complexa, ainda que nos demos conta raramente disso.
‘Tinha’, na primeira poesia, talvez possa ser lido como ‘havia’, com um sentido existencial; mas aqui vamos pensar na efemeridade do evento como ‘estava’. É um deítico, um demonstrativo. Ora, como evento efêmero, faz sentido que seja intercambiável com a circunstância espacial ‘no-meio-do-caminho’; um evento efêmero por uma circunstância espacial. Estar. É quase um pronome demonstrativo: eis uma pedra no meio do caminho; no meio do caminho, eis, uma pedra...
Contudo, a questão do caminhar, a intenção de ir a qualquer lugar não seja talvez um mistério do que se dá imediatamente pelo caminho; a questão esteja quiçá na própria consciência humana. Precisamos nos identificar com a posição inumana para compreender o sentido da vida humana. Como se nos disséssemos: “Bem, tentei olhar o caminho para saber aonde vou; agora preciso olhar-me a mim mesmo para tentar entender aonde vou e nada melhor do que me ver de fora”. Isso se chama ‘refletir’. Do ponto de vista da pedra, metáfora do inumano. A compreensão do destino humano não seria decidida na indicação da pedra, mas a partir da posição da pedra. Como se para entender o sentido da vida humana, fosse preciso entender o sentido de todas as coisas inhumanas, por-se em seu lugar e compreender aonde vão.
Todavia é em vão, se a noção de sentido, direção, rumo, curso da vida está ligada à noção de movimento, intenção e pensamento, então assumir o ponto de vista de todas as coisas, tentar ser infinito, abandonar a finitude e a determinação da vida humana é inútil. Abstrair a posição humana é abstrair o caminho humano e esvaziar a questão; incapaz de antecipar aonde vai precisamente porque a mente humana é finita; incapaz de antecipar aonde todos os elementos e eventos da realidade vão para saber aonde esse obstáculos e circunstâncias o levarão, o homem se torna meramente a “Coisa interceptante”. A reflexão é paralisante. Uma posição final, conciliadora e no melhor sentido da palavra madura demanda que o homem caia de seu observatório, identifique sua posição e seu sentido, veja-se como posto diante do enigma hodierno e imanente, não diante de uma máquina transcendental.
“A Máquina do Mundo” resume essa saga inteira e parece indicar a nova atitude, madura, inconciliadora, porém perseverante, diante do sentido da vida: repelir as soluções dogmáticas e manter aberta a novidade do enigma; a máquina do mundo, “repelida”, se consuma na “treva mais estrita” da estrada. Mas a treva cerrada para a “Coisa interceptante”, “obscura” é justamente o elemento do humano. O convite para a atitude crítica, não paralisante, que mostra o homem numa meia luz carregada, antidogmática, siderada.

Júbilo

Há dois brincos nos meus mamilos
por duas gotas de sangue a sentí-los
sei que estou viva e amo esse dolor
que molha minha pele dura, navalha:

cortar-se com precisão, sal de fruta,
querer pôr no mundo o que é fluído
injetar na veia algum brilho incolor,
pó de si mesmo, neonato, mortalha;

argumento da luz, scória sem hiato,
energia rolando p'las dobras d'infinito,
flor de ninfa'aroma de brando torpor...

flor solitária;
flor vária;
flor flor;
flor.


Oobras abandonadas

Nas gavetas do criado-mudo desse que foi Khármides não muito se dava a ver: uma caneta esferográfica sem tinta, dezessete camisinhas, duas usadas, uma revista de palavras cruzadas, um parafuso enferrujado, um pedaço de barbante, um desenho de um cachorro, uma foto de Isabel Filardis nua, manuscritos desordenados e escritos em cursiva e pulando uma linha a cada uma escrita. Um amigo recolheu todas as camisinhas com um muxoxo, depois retirou a gaveta e rojou todas as coisas citadas acima no chão, com desleixo.
Os cadernos onde todos os escritos desse que foi Khármides remontavam a uma época estival de sua vida, em que sua mente trabalhava rápido e seu corpo descansava de uma lesão lombar e de duas pernas quebradas. Tratava de anotar tudo que lhe parecia conveniente – usava da segunda pessoa do singular para dizer coisas na primeira e assim por diante – por isso suas lembranças são tão difíceis para todo mundo.
Por muito tempo suas notas permaneceram intocadas e aqui o narrador fala em primeira pessoa: ninguém as tocou. Na loja de discos e revistas usados em que trabalhava, dois vendedores fizeram comentários jocosos sobre teu falecimento, sem o menor decoro:
 - Era um sucesso com as fêmeas e um terror com os machos!
 - Sabes aí do que morreu esse cabra?
 - Acidente vascular cerebral, AVC...
 - AVC, e que porra é essa?
 - A mesma coisa que teve o pai do Reginaldo... O cérebro se afoga em sangue...
 - Reginaldo...
 - O porteiro do prédio da esquina, lembra? Faz três meses, o pai estava sozinho, sentiu uma dor de cabeça, caiu desmaiado. Morreu no mesmo dia.
 - Ah... o Reginaldo, claro... Gente fina esse sacana, né?
 - É! E semana passada ele fez um bico aí de segurança e dormiu no serviço...
Khármides era bem reputado, trabalhador, sensato, pagava as contas em dia, digno empregado, obediente e diligente. Dedicou uma década de sua vida ao alfarrábio do centro da cidade. Nunca realizou telefonemas particulares em serviço, nunca se ausentou por motivos particulares, nunca trocou uma frase inútil com seus colegas, por isso andava sempre calado, atualizando o sítio virtual da loja e mantendo em dia a contabilidade da empresa. Para tanto não ganhava salário maior.
Meu maior medo era o de não deixar nada pronto para as futuras gerações: nem um livro, nem uma flor, nem um filho. Para evitar esse dilema, Khármides desenvolveu uma obsessão – que se tornaria uma mania – de redigir epitáfios e pensar em modelos de lápides. Consolo provisório e imediato para um problema sério do porvir. Planejar uma tumba é um ato duplamente profético: trata-se uma predição necessária do futuro; trata-se de uma prédica aos pósteros.
Teus preferidos eram: “Burn like a natural being/ Homeless and astray”; “Mal sabias que outra haveria de ser tua funérea pedra, caro amigo: a do olvido. Quem adentrar hoje o cemitério da Consolação, encontrará num canto, sob um plátano, um bilhete que deixou por ali ao passear com os dizeres "Tu, húmus do futuro, enterra na lápide álacre lágrima"
Outras frases ocupavam sua mente, com igual força e dignidade: “Fala comigo, visitante/ Como se falaras à própria vontade”; “Morto e na paz máxima: /Depois da liça da vida”; “Com a luz e com a sombra sempre/ pó instável/ só meu nome jaz firme nos teus lábios”.
Porém a morte minha ou tua não interessa neste momento. Pensemos naqueles cadernos e nos motivos que levaram-te a quebrar ambas as pernas e um braço e a escrever acorçoadamente: é como se minha vida dependesse disso, pensavas. Todavia Khármides, coitado, ele não atinava. Com teus cadernos sobre as pernas engessadas, um copo de suco de laranja ao lado, preparado diariamente por sua avó, com o peito desnudo e uma tala prendendo-lhe o braço direito, ele tentava escrever em meus diários suas idéias canhotamente. Lento, firme e concentrado, passava horas para vencer uma folha, às vezes duas. Reli de diversos modos para tentar compreender as falas e escrituras de minha mão esquerda. Sua mãe levava o copo de suco e ele sempre pedia o mesmo livro para ler tranqüilamente antes do almoço: O Retrato de Dorian Gray. Gostaria de escrever como Wilde – e te olhavas no espelho – e gostava de pensar numa pintura impressionista, cheia de rugas formadas pelo pincel na tinta empastelada sobre a tela. Azul de Prússia. Ocre. Laranja. Depois quase craquelados e ralos pelo excesso de terebentina. O cheiro frio do líquido chegando ao estômago: Minha mãe sempre põe muito gelo no suco...
Quando ele passou a mão pelo cabelo, olhando seu reflexo no vidro da janela, um homem o observava da entrada do quarto. Khármides escondeu o peito exposto com o lençol, empurrando desajeitadamente o copo de suco vazio. O homem entrou no quarto, seguro e constante, devolvendo-lhe um caderno de notas que recém caíra no chão:
 - Acho que isso é meu...
 - Muito obrigado... E enrubesceu. Voltando-se, desalinhado, o que lhe dava ainda mais charme a seu dorso,tímido, liso e jovem, tentando proteger sua seminudez distraída. Podia-se ver sem esforço sua coluna vertebral até a lombar mais tenra. Rapidamente passou o lençol sobre o corpo, com o braço livre, ficando com uma túnica improvisada sobre o corpo e repetiu:
 - Muito obrigado...
O homem coçou a nuca e ficou observando a janela , quiçá em respeito ao desequilíbrio da figura que ainda se ajeitava. Depois de um incômodo silêncio, disse:
 - Estamos fazendo uns exames de sangue, Khármides. Encontramos algo que me interessou muito...
 - Seus exames devem ser muito intrigantes mesmo. Como estão os meus exames?
 - Os nossos vão de vento em popa! Parece que vamos muito bem, melhorando muito...
Aquela mania de conversar no plural irritava imenso a Khármides. Atalhou o homem com um grito chamando sua mãe. Ficaram se olhando durante alguns segundos, como se fossem trocar de papéis; o senhor, robusto, porém já lhe  protuberava lascivo o ventre, com leviandade passava a mão na nuca e pescoço, tal um pensador imiscuído no curso dos pensamentos não fosse. O jovem lhe trazia lembranças, procurou o espelho, não sabia como conhecia o quarto, contudo o conhecia; o jovem lhe trazia lembranças, procurou-o no leito: distraía-se observando os artelhos, mexia o dedão do pé, absorto e letárgico. Decidiu abandonar o quarto, logo depois de examinar as assaduras que o gesso causava no rapaz:
 - Isso vai mal, menino. Vamos precisar trocar melhor essas ataduras; é preciso aliviar essa queimadura... Observou mais de perto – Há pus nas coxas!
 - Então não é bom coçar, não é?
 - Deixa prurir, menino, o que vai te aliviar é fazer a pele respirar mais!
Ficaram alarmados. Chamou a mãe, arquienfermeira, e lhe explicou com calma que o pus não era nada. Deixa prurir, mas a pele precisa se refrescar um tanto. Depois deu as espaldas para o jovem. Chegando ao batente da porta virou-se:
 - Vamos melhorar?
 - Então nossos exames vão precisar de um pouco de ar...
Não mais se confundiram, entreolharam-se imantados, quando a mãe atalhou, instaurando a ausência  de individualidades:
 - Ai! Ai! Meu coração! Estou desmaiando... Pus! Ai, filho meu, minha carinha linda! Pus! Ah... E não desmaiou, porém contemplou a cria com tristitia e recusou o copo d’água que Khármides lhe estendia. O senhor deu um passo atrás, como para socorrê-la. Nada houve: foi embora. A mãe ainda contemplou embaraçosamente o rapaz, até que ambos se vexassem e ele dispensasse com o olhar a progenitora.
Ah... eu vi a nuvem passar mais rápido do que o Sol pelo horizonte, enquanto eu, deitado no leito e eu, mãe desesperada e eu, senhor de branco, convergíamos na espiral do tempo: puros átomos! Pensava, com o caderno em branco sobre o colo, segurando o lápis na mão lerda. Seu tu pudesses escrever um livro com teus pensamentos, decerto o farias! E venderias caro, pois são teus e desejarias prêmios, pois são reflexões e ganharias nada, justamente porque só a ti pertencem e só a ti fazem sentido. Nunca deveria de haver vendido meus pensares! No meu lugar, o que farias? Khármides sobrerrefletia, precisava ser econômico com as palavras, já que seus dedos não eram firmes e muito pouco do que dizias se fixava no papel, em garranchos horrorosos. Pensei em uma monossílaba:
“Tu”
Com calma a escreveste. O manuscrito lhe saía ligeiramente desajeitado, hesitavas entre o ‘t’ e o ‘u’ como se fossem as últimas letras escritas por aquela desleixada mão.

Família vende tudo

 - 53 quilogramas de carne vermelha, sem osso, congelada, para churrasco: R$ 214, 35
 - duas resmas de papel branco formato A4, para impressora: R$ 28
 - abajur de mesa à lâmpada incandescente (60 W), 110 Volts, verde translúcido, há mais de 65 anos na família, tcheco ou eslovaco: R$ 160
 - seis camisas de manga comprida, usadas, sortidas, tamanho M, gola 3: R$ 40
 - 1 par de sapatos de bico fino, tamanho 40, sem salto: R$ 35
 - 6 jogos de roupa de cama de casal usados, King Size: R$ 150
 - uma mesa de centro de jacarandá, redonda, 85 centímetros de diâmetro, com pequenas marcas de copo e os pés ligeiramente lascados, na família há 80 anos: R$ 280;
 - boné da equipe de basquete Boston Celtics, oficial, usado: R$ 15;
 - par de cadarços de tênis branco, novo: R$ 8;
 - geladeira Cônsul, antiga (década de 60) mas conservada, para apreciadores de eletrodomésticos estilo vintage, vermelha, 220 Volts, 80 centímetros de comprimento, 1 metro e 65 centímetros de altura e 85 de profundidade: R$ 350;
 - lápis de olho, usado: R$ 8;
 - catorze borrachas usadas: R$ 5;
 - uma escultura de anjo, 13 centímetros de altura, em biscuit, muito bom estado: R$ 8
 - "Anna Karenina" de Lev Tolstoi, Coleção Grandes Clássicos, nunca foi tocado, Editora Abril Cultural, nunca foi tocado, para colecionadores, lombada vermelha e letras douradas, nunca foi tocado: R$ 3
 - olho de vidro, íris castanha, nunca foi usado, na família desde a década de 1980: R$ 10
 - camiseta com os dizeres "Vá ao teatro mas não me chame", levemente ensangüentada na gola, em perfeito estado, com pequenas manchas nas costas: R$ 8
 - Coleção da revista "Contigo", usada, 30 volumes: R$ 80
 - comida para cachorro, raças pequenas, sabor carne, pacote de um quilograma, fechado ainda: R$ 18;
 - álbum de figurinhas da Copa do Mundo de 1982, completo: R$ 50;
 - álbum de figurinhas do Campeonato Brasileiro (Série A e Série B) de 1987, faltando lateral esquerdo do Guarani e cabeça de área do Bahia: R$ 20;
 - bandeira oficial da Tchecoslováquia, 1,15 m por 0,8 m: R$ 35 ou duas bandeiras - da República Tcheca e da Eslováquia - 0,75 m por 0,4 m (cortada ao meio): R$ 20 cada;
 - bola de futebol de couro, usada: R$ 12;
 - boneca Barbie, usada: R$ 14.

'Kharmidismo'


'Khármides' não soa como um nome próprio, ou melhor, pode ser uma infinidade de coisas; dentre as quais, um prurido nas pálpebras; uma erupção cutânea no céu da boca; um blend de baunilha e canela; um tipo de bala de côco; uma ave rara da Mata Atlântica; um diálogo de Platão. Quando estiveres à beira da morte, amigo, tenta decidir a que gênero de coisa pertences. Verás que é tarefa árdua. Digamos que 'Khármides' soe como uma doença mental. Se o 'Khármidismo' for uma doença mental, leitores, então durará tanto quanto a própria mente humana durar, o que é uma maneira enfraquecida de se declarar eterno. Digamos que 'Khármides', enquanto enfermidade psíquica, é materialmente eterna (para todos os efeitos, 'Khármides' dura enquanto durar a espécie humana, porquanto o homem é definido pela presença do fenômeno mental). Ora, não está em nossa alçada dizer-lhe não ser uma doença ou decidir se um homem é um homem, se é mulher; se ele é um malestar, se é um objeto! É próprio do ser humano escolher o saber e a estupidez e dedicar-se ao bem e ao mal. O erro é acreditar sermos coerentes o tempo todo... Meu ponto é apenas o seguinte: é plausível desejar a eternidade e é plausível obtê-la, se se definisse o personagem como uma doença mental.
O 'Kharmidismo', nesse sentido, é uma família de estruturas psíquicas esquizofrênicas. Enfermidade pouco conhecida e pouco divulgada, ela envolve um complexo de quatro expressões básicas, calcadas na mesma estrutura 'polymathism+solipsism': Ezrism; Quijotismo; Ulissism; Gargantuïsme.

Anna O.
Ezrism (Galaxismo em português)

A. Characteristic symptoms: at least one of the following
1.      Polymathism, bellettrism
2.      Hallucinations of grandeur and solipsism
3.      Disorganized speech in prose or in verse due to severe polyglotism
4.      Grossly abnormal behavior, such as catatonia
5.      Restricted affect, avolition, asociality, acritical conservantism
B. Social/occupational malfunction: For a significant portion of the time since the onset of the disturbance, one or more major areas of functioning such as work, interpersonal relations, or self-care are markedly below the level achieved prior to the onset (or when the onset is in childhood or adolescence, failure to achieve expected level of interpersonal, academic, or occupational achievement).
C. Ezration: Whole life or as long as the subject's intellectual vigour resists. Symptoms may be manifested at once, alternatively. But at least two of the above listed at a time (Criterion 'A'). Odd beliefs and singular ones, regular monologues and ordinary irritation before ignorance and before revolutionary ideologies.
D. Ezraffective and Mood Disorder exclusion: Ezraffective Disorder and Mood Disorder With Psychotic Features have been ruled out because either (1) no Major Depressive or Manic Episodes have occurred concurrently with the activephase symptoms; or (2) if mood episodes have occurred during active-phase symptoms, their total duration has been brief relative to the duration of the active and residual periods.
E. Substance/general medical condition ezrexclusion: The disturbance is not due to the direct physiological effects of a substance (e.g., a drug of abuse, a medication) or a general medical condition, but to the writing in different languages with different verses (including blank ones).
F. Relationship to a Pervasive Developmental Ezrorder: If there is a history of Autistic Disorder or another Pervasive Developmental Disorder or other communication disorder of childhood onset, the additional diagnosis of Schizophrenia is made only if prominent delusions or hallucinations are also present for at least a month (or less if successfully treated).
G. Poetriness: "Alas, Ezra, the son of sounds of yore/ To thee, free philos of feeling and thought/ I now must turn and test my spirits/ Could my memory recall in thine mould/ what the unlearned nature hates to hide/ its sapientia and its sôphrosunê/ Mai no voldría parlar-ho amb la veu propia/ Se escrever sobre o escrever é o futuro do escrever... [and so on and so forth ad infinitum]"

O Minotauro I




Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
que tem medo de Creta

Meu pai me ninava com essa canção, quando eu era menina. Ele me balançava no colo um pouco, normalmente eu já estava cochilando. E o balanço e sua voz grave e lenta e depois o macio do colchão, me embalavam para dentro de um sonho. O doutor acabou de ir embora, do lado de fora do quarto pude ouví-lo dizer:
 - Kharmides está ótima! Em forma! A musculatura anda um pouco flácida nas coxas, e a cicatriz das costas ainda está muito rígida... Não, não sei o que esperar para os próximos dias, só paciência...
Albrecht tem uma voz que invade às vezes meu pensamento e chego a pensar que ele me cantava para me ninar. "Creta", Creta, Creta... meu pai sabe o que essas palavras significam... Esse bastardo me apalpou inteira, por dentro das coxas até chegar à minha vagina, enquanto sorria. É um filho da puta!
"Não, o Minotauro não é um signo do horóscopo", foi a conclusão a que pude chegar assim que revi o doutor Albrecht. A tala no meu braço e o gesso da perna estavam me incomodando havia dois dias. Acho que vou precisar de muita terapia. Estou sem depilar as pernas há mais de 1 mês - que horror! - e este maldito Albrecht, desgraçado, me deixa sem saída. Meu namorado não volta com o café. Enquanto isso, televisão televisão televisão. Estou sem saída.
Ele me olha de maneira neutra e isso me irrita, haverá esquecido quantas vezes me disse "eu te vi crescer, Khármides!", "esses seios eram tão pequenos e sedosos, como um prepúcio". Ele não se lembra das vezes em que fez juras de amor e me obrigava a sodomizá-lo. Que monstro! Não se vê? Que monstro! E quem o convidou? Justamente meu namorado! E ele já vem se reaproximando, Albrecht! E dispensa meu namorado "Acho que café não é muito recomendado, porque você não busca aquele almoço de que te falei, Raul?"
Raul abandona seu posto. Estou sozinha. Depois Albrecht sai rapidamente, frio, sem me olhar; deve ter dito algo a Raul na copa. Eles são bem parecidos, tão semelhantes que chego a temer, a temer que eles não se fundam numa pessoa só. Se meu pai soubesse tudo o que Albrecht fez comigo, quando eu era apenas uma criança. Se Raul soubesse tudo o que Albrecht fez...
É óbvio que não existe um 'Albrecht', Albrecht é um nome fictício para todas as vezes que um homem me olhou na rua, me esfregou contra uma parede, contra uma pia. E, ao mesmo tempo, Albrecht foi um pediatra que me bolinava na maca desde os cinco anos de idade, pelo menos desde que me lembro. O que há, com efeito, são as mãos dos homens, as barbas, as babas, os milhares de olhos; mil visões que parecem nos proteger e parecem nos despir - como carcereiros que me lembram sempre do meu ser humana e ser encarnada e ser de desejos. Argos Panoptes! Albrecht! Estou com fome! Tragam-me comida, porque a consulta vai demorar.
Ele apalpou minha perna, perto da virilha e perguntava se doía, não doía, perguntava se formigava, não formigava, perguntava se latejava, não latejava, perguntava se eu sentia algo, não sentia, perguntava se eu estava bem, não estava, acariciou minha virilha até roçar minha vagina, mas não encontrou nada. Veio roçando sua calça no gesso. E o nojo contorceu e virou meu rosto, de modo que obriguei-me a perder o conhecimento de mim mesma e a porta do quarto de abriu ou se fechou, foi como se eu fechasse meu corpo. Indiferente ao mundo...
Sorri de novo quando percebi que havia porra por todo o quarto, nos meus cabelos, nos meus braços, mãos, pingando do gesso e umidecendo a tala. Tirei o último pentelho de dentro da boca e me limpei. O som do chuveiro me acalmou um pouco e fiquei pensando numa canção de levar menininhas para o abate.

Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
que tem medo de Creta

Imagino as nênias que as mães atenienses cantavam pensando nas filhas sacrificadas em Creta, repetindo alguma frase de um pai, de um rei tristonho e leviano:

para o labirinto do Minotauro te levei
eras tão linda, virgem risonha
fresca'inda, meu cacho d'uva,
te colhi, filha minha, filha minha, te levei.

para o labirinto do Minotauro te levei
de noivinha, minha menina boa,
eras uma princesa e uma fruta,
te colhi, filha minha, filha minha, te levei

para o labirinto do Minotauro te levei
uma rainha que sorri, sonha,
digna dum rei, azeitona scura,
te colhi, filha minha, filha minha, te levei

mulher do monstro
te levei
sacrifício a Creta
te levei
oferendamártir
te levei
minha'hermafrodita
te levei






Esse pensamento me consola. Raul não veio logo em seguida, mas educadamente me ajudou a terminar meu banho. Depois foi seu corpo que dançava e rebolava na água, enquanto eu me contorcia um pouco de dor, porque não encontrava uma boa posição para vê-lo banhar-se e respeitar as talas. Depois a água secando por dentro do gesso assava minha pele. Essas dores que latejam me ajudam a ter certeza de que os tecidos ainda reagem e de que, se meus músculos definham, meu corpo ainda está vivo e preste. Raul nem me ouve quando lhe pergunto o que comerei no almoço, mas responde sem saber quando diz que o médico me recomendou um prato de comida tailandesa de um restaurante que está à esquina. Foi buscar o almoço que estava no forno para manter a temperatura. Aaaalllbrecht! Minotauro! Recomendação do monstro! Como dizer não? Digo sim! Digo sim mesmo! Tragam a comida! Tragam a bebida! Um brinde aos criminosos! Ele vai voltar aqui e vai sorrir de novo, cínico como um ignorante sem escrúpulos, ele vem se esfregar e buscar seu prazer! Mas não estou aqui somente para dar ou procurar prazer! Eu me levantarei em breve para caçá-los à faca e aos gritos, assim que minhas talas endurecerem novamente minha coluna, assim que meus membros absorverem a retidão dos gessos, assim que as cicatrizes engrossarem minha voz e minha alma... Estou aqui também para abater esses monstros: Albrecht, filho da puta, sou a virgem chamada Teseu! Quem te mata todo dia, anão ambicioso, sou eu!

O Minotauro II 




Creta
Minos é rei, Pasífae não
e há o delicioso
alvo
poseidônico Touro.
- Constrói uma vaca de madeira, engenheiro,
   eu vou costurar sem dedal e sem agulha
   esse boi na minha barra
   na bainha
   na vagina
   na barriga e à unha.
   - disse a rainha.

Fez-se

Creta. É difícil de chegar a Creta.
Idem para a buceta.
Não há reta
êta!
até o Tao
 - Tua tês!
até o talo, onde nasce à vontade:

Minotauro!

labirinto: tesão!
tesão
tesao
tesau
Teseu!
 - Tua tês!
lábio,
rio, pinto,
taurus
total
tau
theta
tal têta
 - Tua tês!
labirinto
tal luz
tão luz
Tao-te-Ching
têta!
totem
se rolar a cabeça
rôla
e a cabeça rola
rôla
e a cabeça entra
rôla
pinto dedo tês lábio têta e rôla

É doce morrer em Creta
em nome de Atenas
e com duas sílabas de gozo no sangue...


Manual:

Parabéns! O senhor/A senhora acaba de se tornar um feliz usuário de nossos móveis de cozinha 'Khármides'. Khármides é uma exclusiva linha de consoles ergonômicos para preparo e serviço de alimentos, especialmente criado para os novos tempos e conceitos de espaço gourmet e para cozinhas modernas. Montar o seu Khármides é simples, fácil e prático.  

Se vos calásseis um segundo, o mundo seria um lugar mais calmo

Enquanto olhava as revistas antigas de costura sobre o balcão, a matutar sobre qual seria a maneira mais vantajosa para se matar. Porém, Khármides não podia se concentrar totalmente na tarefa que se propusera, dado o barulho no alfarrábio. Conversas e clientes, perguntas, o som da máquina registradora. Cortar os pulsos pode ser doloroso, mas permite fruir da consciência até os últimos momentos. Porém, é doloroso. Um remédio, um suicidígeno - por assim dizer - é uma maravilha porque permite morrer sem dor, mas elimina a consciência nos últimos segundos. 
Um funcionário vinha perguntar o preço do disco do Jimmy Hendrix "Are you experienced?" - uma raridade! - isso não tem preço. O funcionário tresolhou-o, suspreso:
 - Deixa para lá, achei o adesivo com o preço do LP. Você precisa se concentrar mais no trabalho, Khármides. Quando o chefe chegar não pode vacilar desse jeito, viu?
Se vocês se calassem por um segundo, eu conseguiria decidir qual é o melhor modo de suicídio. Retirou do bolso um pedaço de papel amassado onde se lia uma pequena lista de afazeres antes de morrer: escolher última frase; escolher método indolor e que não embote a consciência; limpeza; praticidade; escrever último bilhete para mãe e pai e namorada; testamento.
A lista acabava aí, mas era fruto de dias e semanas de reflexão. Segurava o bilhete esticando-o, para ter certeza do que estava escrito.
 - Khármides, a cliente vai comprar esses VHS's e esses dois LP's aqui, ok?
 - Ok.
Olhou com calma o rosto da mulher. Gostaria muito de ver um belo rosto no momento da morte. Seria bom haver alguém para escutar sua última frase, consolá-lo da dor, apesar do indolor de seu futuro suicídio.
 - Esse VHS é mesmo muito bom: "Quanto mais idiota, melhor"; "Mad Max 2"... esse outro não conheço... "Discreto charme da burguesia"... Bu-nhu-uéu.
 - É para minha mãe, ela passou aqui ontem e viu esse filme na vitrine, mas não teve tempo de comprar. 
 - R$ 18. É dinheiro?
 - Aceita cheque?
 - Claro.
Um rosto. Um cheque. Um número. Um charme. Quatro coisas que gostaria de ver junto ao meu leito extremo de morte, Khármides pensava algo assim. A moça foi embora, escreveu à lista "companhia". Egoísta, Khármides, é triste obrigar alguém a te ver morrer. É egoísta. Por outro lado, tal como ele o estava planejando, quer nos parecer um curioso e interessante espetáculo. Hesitou se escrevia algo como "ter um filho", o que obviamente atrasaria o evento e consumaria sua egolatria. 
 - Rapaz, quanto custa esse CD do Rei?
Não era o Elvis. Por que a desgraça do Roberto Carlos é tão amado? Música cacete.
 - R$ 6.
 - Vou levar, eu gosto muito, sabia? Meu pai... blá-blá-blá-blá-bláá-b-l-a-á-a-blá-blá...
Não lhe interessava nada daquilo; olhou pela porta a calçada suja, imunda, sacos de lixo no chão, fezes caninas ou sabe se lá de que animal humano. Fezes de pombos. Roberto Carlos. Fezes de ratos. João Gilberto. Fezes de gatos. O barquinho vai, a tardinha cai. Fezes de clientes. 
 - Temos uma ótima seção de Tom Jobim. Aqui em São Paulo queremos nos livrar de todo o Tom Jobim. Gostamos só de Villa-Lobos.
A cliente achou estranho o comentário e foi buscar o CD do Legião Urbana. Perguntara sobre o João Gilberto só por curiosidade, quem diria que há loucos também atrás de balcões. Claro, os assassinos também trabalham. Os psicóticos, os psicopatas, os corruptos, os violentos, os obsessivos estão em toda parte: vencem eleições porque são especialmente carismáticos. Latrocidas fazem anúncios de fraldas infantis. Ninfomaníacos andam de bicicleta e fazem manifestação na Av. Paulista. Credo, eu só queria saber do João Gilberto, porque meu pai toca violão e adora. Melhor ir embora dessa loja, o caixa está me olhando meio de lado. Sádicos e cínicos se formam advogados e escrevem colunas de jornais de altíssima circulação.
 - Meu filho, você está se sentindo bem?
 - Como assim?
 - Você falou a sério com a cliente?
 - Claro, eu não gosto do João Gilberto. Me soa como fezes de pombo. Eu não gosto.
O vendedor renuiu sem compreender. Depois franziu a testa num misto de piedade e reprovação.
 - Você precisa de mais experiência, Khármides. Quando o chefe chegar, não faça essas coisas, combinado?
Credo, eu tampouco gosto de bossa nova. Meu negócio é pagode, forró, axé, xote, baião, vanerão, dança de roda. Porém... não sabia que era uma coisa da cidade de São Paulo não levar a sério a bossa nova.
 - Escuta, então paulistano gosta do quê?
 - Paulistano gosta é de fezes de pombo. 
E os dois riram.
 - Não, sério... você que trabalha nesse sebo... o que as pessoas mais levam de música?
 - Wando, Roberto Carlos e Fábio Júnior. As fezes de pombo são de graça, minha senhora, é só esticar a mão!
Riram de novo. A mulher não deve bater bem. É doida como eu. O Cosme veio interromper a conversa olhando-me de soslaio, bravo. Num tom de leve reprimenda
 - He he he... não ligue para o Khármides, minha senhora, ele é um rapaz bom, mas gosta de surpreender as pessoas... ótimas escolhas que a senhora fez... "Roberto Leal", "Enredos de 1988"... tenha um bom dia!
Depois foi um vácuo de horas. Com o bilhete esticado e no ruído absurdo da cidade, é impossível enxergar as coisas com tranquilidade. Escrevia e rabiscava sofregamente itens em sua lista de etapas preparatórias do suicídio. Ficava absorto. Cosme não o entendia. Alguém lhe tocava o braço. Fezes de pombo lá fora. Se vos calásseis por mais um segundo, eu me iria desta lugar muito mais aliviado.  

Algumas horas depois 

"Aquele homem está sentado à porta faz duas horas. E não pára de olhar o prédio. Acho que não vou sair para comprar pão, não se sabe o que essas pessoas de rua querem hoje em dia, é mais seguro permanecer em casa. O ideal seria construir barricadas nas calçadas. Mas eu preciso comer algo. Tremenda besteira não ter comprado nada no caminho do trabalho até aqui. Agora ele fica aí calado, coça a cabeça, revira algo em sua pasta de courino, parece ocupado. Ora essa, agora nossa calçada é escritório de vagabundo."
Um misto de medo e curiosidade fazem com que Khármides não ouse sair à rua e analise minuciosamente o homem; uniformizado como um policial; todavia, há algo de doce nessa espera, há algo de terno em sua presença; ela não teme o pior... 
"Será que ele sabe que eu pretendo me matar? Será que alguém no trabalho lhe contou algo? Onde está minha carta de despedida? Estranho... ela sempre fica neste bolso aqui... onde foi parar? Será que deixei cair à rua?"
Se sente estúpida: "se Raul soubesse de tudo? Se qualquer pessoa encontrasse o bilhete, seria um desastre." Quiçá esse policial na rua queira demovê-la da idéia. Não quer explicar porque se suicidaria. Maçante. Semana passada alguém no ponto de ônibus comentarara um suicídio no metrô: Coisa horrível! Gente sem Deus! Atrapalha a vida de todo mundo!
Quando a chuva começa e os carros passam praticamente singrando o asfalto e molhando tudo em volta, o policial se encharca e se esconde debaixo de uma árvore. Está inquieto, é demasiado magro para o serviço; impaciente, balança um pequeno cartão azul na mão. E um pedaço ensopado de papel branco, onde provavelmente Khármides registrou seu testamento...
"É minha carta de despedida para o Raul!"
Ela desce desesperada correndo, para abrir a porta e dar abrigo ao nobre funcionário público que encontrara seu testamento:
 - Moço! Moço! 
O homem aponta para si.
 - Sim! Isso aí é meu! Vem aqui, você está todo ensopado...
Ele vem correndo, tem a barba por fazer, está triste, mas um relâmpago violento começa a animá-lo de repente. É como se ganhasse vida. Tudo se justificara. A espera não fora em vão. A chuva não mais o encharcaria. Aquela mulher precisava dele naquele segundo. Um sorriso. Um sorriso.
 - Encontrei isso na rua, moça. É teu?
 - É meu sim...
 - Escuta, moça, eu não te conheço, mas tua carta me comoveu. Duas horas atrás eu a vi sair do metrô, era a minha ronda. Ao virar à esquina, vi como você mexeu no bolso para pegar as chaves; este bilhete caiu.
Ele tinha razão, era esse o bolso onde deixava sempre as chaves. A história é consistente.
 - Me desculpe, Khármides, se eu te assustei, não era a minha intenção.
Ele lera a carta.
 - Você leu a carta?
 - Você quer falar sobre ela?
 - Vamos subir, moço; você pode tomar um banho em casa.
Imediatamente saca o celular, porém hesita antes de telefonar ao namorado. Não se sente segura. Se chamar Raul, talvez tenha que contar tudo. Não pode contar, não consegue contar, não pretende contar. Prefere correr o risco. E pagar para ver. Ninguém os está vendo. 
 - O prédio não possui guarita nem porteiro, moça? Muito perigoso isso. O prédio da esquina foi assaltada faz um mês só. Muito perigoso.
Era policial. Respirou aliviada.
 - Não vou atrapalhar sua ronda, senhor policial?
 - Não - olhou o relógio - ela acabou faz vinte minutos...

Correspondência sigilosa

Desejo contar-te algo que ninguém sabe,
dum grito enfiado'ao peito, surdo e acre,
e por ser tão surdo, não mais responde,
rude, mas suave, assim sucumbo onde,
para libertá-lo da lividez do meu tardor
dev'ria volumoso e'em estrépito o pôr;
mas calado já m'esqueço do que gritava
sem resposta, silêncio que esbravejava,
quietude secreta, meu diálogo de mudezas
red'zido, fosco, gutural, consoante presa
quero revelar algo e não tenho'que diga:
sonho torpe'abandono, nevralgia'e fadiga.

Uma mentira!

Se eu tiver de inventar uma história inteira para justificar minha morte, ainda assim valeria a pena. Talvez eu precise me fingir defunto, gostaria de estar acordado enquanto os outros me choram - é muito egoísta eu sei, mas eu me sinto desse modo - e levantar de repente e reverter as expectativas alheias. Bagunçar o funeral, interromper o maldito padre que minha mãe chamará para me benzer e me rezar e me velar e me consolar e me conduzir aos reinos secretos do céu etc. Dobro e desdobro a lista de afazeres, como se isso fosse diminuir a lista e me liberar deste mundo. O chefe entra pela porta e fuma um cigarro com desleixo, mal imagina que morrerei em breve. Perderá um bom funcionário, pontual e atencioso. O Cosme provavelmente virá trabalhar no caixa; ele é muito simpático, mas burro como um poste. Uma mulher me pergunta o que é este papel que mexo e remexo. Digo que são compras, que são afazeres, digo que necessito me concentrar para não olvidar. Nada disso é mentira. Viver a vida é ir esquecendo-se de que se morre. Minha filosofia, se alguém me permitisse a expressão apressada, é viver a morte em sua verdade mais profunda. Na igreja, lá no Vale do Ribeira, donde vim, o padre dizia coisas parecidas e isso me inspirada temor e humildade. "Viver a morte do Messias, aquele que morreu por nós...", aquele que morreu por nós antes de existirmos, morreu por seu antepassados, por seus descendentes, por seus apóstolos, morreu por seus inimigos, morreu por seu detratores, ofensores, seguidores, conhecidos, parentes, centuriões, chineses, coreanos, povos árabes, bantus, iorubás; por Dom Sebastião e por Amador Bueno. Na faculdade o pessoal tira sarro quando falo em Deus. Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Deus morreu faz tempo. Não me incomodo. Acredito e tento perseverar. Porém minha fé fraca e leviana, eu já confessei esse desejo de suicídio. "Fé leviana, meu filho, suicidar-se é tolo e leviano"...

Viver a vida vendo merda de pombo, usuário de crack e latrocínio, tudo produzido pelos mesmos seres humanos. Usar droga, destruir uma calçada, uma lembrança histórica, destruir o rosto de um sexagenário inocente, seqüestrar alguém, aumentar o preço de um produto - um papelote de crack por exemeplo -, isso são os hobbies mais comuns nas grandes cidades. O contrário dessas coisas tampouco é necessariamente mais correto e se o é, é muito mais entediante. Num mundo assim eu não desejo viver e o padre "Este é o mundo onde nasceste, meu filho, é teu lar"...
O que me convence mesmo a permanecer vivo são as pequenas obrigações e as trivialidades: sorrir ao porteiro ao deixar o prédio; dizer 'bom dia' ao motorista do ônibus; perguntar ao Zé do restaurante como a vida está e não prestar atenção à resposta; ver sorrir uma moça ao comprar um CD do Backstreet Boys; dar o troco a um velho ou uma velhinha que fará a conta meticulosamente, atrasando a fila; ver um rapaz passar pela calçada com uma rosa (Opa! Acho que conheço esse aí!), desdobrar a lista de afazeres antes do suicídio; dobrar a mesma lista. O chefe apaga seu cigarro em um cinzeiro ao balcão e dispara um "Estou preocupado contigo, Khármides..."
 - O que eu fiz, chefe?
 - Vamos ali ao escritório, por favor, precisamos conversar...
Odeio precisar conversar com alguém; por mim, não conversaria com ninguém.
 - Se o senhor acha... então.
A porta se fecha atrás de mim, o burburinho da rua some, abafado pela pesada porta de madeira.
 - Escuta, aquela lista que você deixou cair ontem está aí contigo, não?
 - Do que você está falando, chefe.
É como se ele lesse meu pensamento, como se ele estivesse narrando esta história. Como ele soube?
 - Olha, rapaz, eu não tenho tempo a perder. Escuta, não sou xereta nem nada, mas sua mãe ligou mais cedo, antes de você chegar, desesperada, e me pediu para perguntar se você tinha pegado alguma lista sem querer da casa dela, que era uma lista de compras, mas com a senha do cartão e me pediu desculpas... E acabei de lhe ver dobrando uma lista... rapaz, você está roubando sua mãe.
É tudo mentira! Acho que não quero me matar. Inventei toda essa história?
 - Chefe, essa lista estava guardada na casa da minha mãe, isso é verdade, mas ela é minha!
 - Bem... decida aí o que pretende fazer, porque ao meio dia você virá à minha sala telefonar para a casa da sua mãe. Não gosto nem de pensar que estou protegendo ladrão. Quer roubar a mãe, rapaz? 'Tá louco?!
Que reviravolta! A lista é da minha mãe. Chocante! Não, esta lista é minha, preciso resistir.
 - Pois ao meio dia virei telefonar, chefe. A lista é minha. Aqui não tem nenhuma senha de cartão, senhor.
Tem senha de cartão sim, entretanto... é do meu próprio cartão. Afinal, não posso esquecer de anotar minhas senhas na carta de despedida; não quero dar trabalho a ninguém. Ora essa! Minha mãe querendo roubar minha lista, como ela a viu? Ela vai acabar comigo assim! Como ela entendeu tudo?

Um café

O café estava pronto, quando o policial saiu de meu banheiro. Ele não quis me dar a carta antes de entrar no banho por medo de ser expulso. Ele sabe quão importante é esse testamento para mim: ele o leu certamente! Estava extremamente constrangida, sem saber se alguém o vira entrar em meu apartamento. Raul não pode ouvir falar dessa carta antes da hora certa. Depois que perdi minha lista de tarefas, não sei se estou seguindo o cronograma corretamente. Raul não pode saber de nada. O policial saiu do banheiro. Não sei nada a seu respeito. Enquanto vou buscar o bule na cozinha, tento distraí-lo com alguma amenidade sobre o clima de São Paulo; digo que a cidade se chama "Piratininga" no começo, digo que está frio e que meu namorado está chegando. Este homem poderia me assaltar facilmente; se for esperto, contudo, o fará sem que eu perceba. Quando entro à sala de novo, é como se ele acabasse de se sentar, há um rastro de água sobre o taco. Raul não pode saber de nada. Mas ele me olha decidido:
 - Você pretende se matar, ele afirma um pouco de súbito. Anuo e parto em busca de um pano de chão.
 - Eu não lhe devo satisfações e agradeço pelo senhor ter encontrado minha carta de despedida. E recolho a carta absolutamente encharcada de água e a guardo no quarto imediatamente. O policial retira o quepe e vai enxugando o cabelo molhado e a nuca.
 - Quem é Alberto? 
 - Alberto... 
 - Você o cita diversas vezes em sua carta. Estou curioso, esse homem abusou de você quando menina, é isso?
 - Não sei explicar, são memórias de criança... Tento lembrar, mas tenho uma sensação ruim ao perceber que estou prestes a me lembrar, o senhor já sentiu isso?
 - É como me sinto se lembro das surras que levava na escola...
Ele dá uma risada e parece leve, muito mais leve do que eu. É como se ele começasse a funcionar novamente. Um sorriso muito suave e dissimulado toma sua face. Ele é um criminoso vestido de policial, agora entendo...
 - Quero sim me matar, senhor policial, para você deve ser banal até.
 - Conheço maneiras de suicidar-se que poderiam lhe ajudar.
Um facilitador da morte! O acaso me trouxera um serviço que nem em sonho eu requisitaria.
 - O que o senhor quer dizer.
 - Primeiro, pára de me chamar de 'senhor'!
Constrangida. Constrangida. Não deveria deixar esse homem entrar em meu apartamento. Tem a barba rala, por fazer, não se parece muito com um policial. 
 - Esse Raul é seu marido?
 - Digamos que sim. Escute, então, ele era amigo de infância do meu pai. Quase como um irmão - mais novo - do meu pai. Desde que meu pai morreu, ele vinha nos ajudando em casa, até que nos apaixonamos.
Por quer contei tudo isso? Que vergonha! Não devo satisfações a esse homem. Seu olhar insolente parece invadir minha alma. Ele já me entendeu!
 - Certo... "Raul, você foi como meu pai e confessei coisas que não diria a ninguém"... veja, moça, eu decorei sua carta. É bem escrita, sabia?
 - O senhor é policial mesmo?
 - Claro, policial militar. Meu batalhão é o da região da Estação Armênia do metrô, moça. "Alberto foi meu primeiro amor, você sabe disso."
 - O senhor precisa me prometer que não vai sair por aí declamando essa carta.
 - Já está me chamando de 'senhor' de novo.
Tentei atalhá-lo. Sem saída, como num labirinto. Sem ar. Quase desmaiando.
 - Bem, se o senhor já terminou seu café.
 - Que mal-educado, moça.
 - O senhor precisa ir embora.
 - Não seja assim. E quis pegar minha mão, mas eu me desviei.
 - Engraçado, moça, você não se lembra de quem foi Alberto, diz ao melhor amigo de seu pai que ele foi seu primeiro amor e, ao mesmo tempo, tudo leva a crer que esse homem abusou de você a infância inteira.
 - Quem disse que Alberto era um homem?

Solitário

Se eu pudesse nomear as coisas todas 'Khármides', todas elas eu gostaria 'Khármides'; vê, leitor, todos somos um pouco isso: anonimato, indiferença e irritação. Se Khármides for isso, então tudo o que for humano pode ser 'Khármides' num sentido. Enquanto nosso personagem é expulso do próprio apartamento pela própria mãe, cabisbaixo, escutando impropérios emitidos por sua progenitora. Ele ouve. Tu também os ouves, leitor. Como um caroço em tua garganta, entalado, enorme. A vergonha e a revolta te fazem distanciar de ti mesmo, não?
 - Vagabundo! O que você anda fazendo neste apartamento que sua vó e seu vô trabalharam a vida inteira para comprar?!
Vagabundo ela diz. Tu não sabes o que responder. Cabisbaixo, talvez desças a escadaria, com uns poucos trocados de seu bolso das calças dê para comprar um café, mas precisa ser longe, não queres ver tua mãe nunca mais... Pois, por tudo de Khármides que todos temos dentro de nós, caro leitor ou leitora cara, estaria autorizado a reagir dessa forma um pouco insoez e rude, abandonando tua própria mãe dentro da casa que pega fogo - em sentido figurado - e com a sensação amarga de cumpriste teu papel.
 - Mãe, não voltarei nunca mais...
Sentado à calçada, inconscientemente perto de onde trabalhava. Contorcido o rosto, numa careta de estranhamento e dúvida - o que há de mal em pensar em suicídio? Pensar em si pode causar algum mal? Ninguém pensa em matar o vizinho, em chutar um cachorro chato às vezes? Ninguém pensa em bater a cabeça contra a parede, em socar o box do banheiro, ninguém pensa em se jogar da janela? Ninguém pensa em mergulhar de cabeça no fogo, em tomar cicuta, em pular de um avião, em atravessar a rua na ponta do pé no sinal verde?
Um mendigo que fuma se senta ao lado de Khármides. Ninguém nota um mendigo que fuma até ele se sentar ao seu lado:
 - Você trabalhava naquele sebo do próximo quarteirão, não é?
O hálito, o bafo, o cheiro, o fumo, o cigarro, os dentes. Suor. Abraçaram-se:
 - Calma, rapaz, eu não lhe conheço. Você me ama?
 - Eu te amo.
Abraçaram-se. E o mendigo que fuma deu-lhe um cigarro e foi a única coisa de se lembram. Começou a fumar imediatamente. Passando em frente ao alfarrábio, passando em frente à galeria do rock, passando em frente à Praça do Correio, lá onde deveria haver um rio, lá onde deveria começar a parte da velha da cidade. Todavia, nem começa a memória, nem começa a história. Tudo se apaga. Lá, onde deveria haver uma metrópole que cole os povos com palavras e com sêmen, há somente um mendigo que fuma:
 - Eu lhe segui, amigo. Eu 'tô afim de ir até à Praça da Sé, você topa?

Pílula

Para quem deseja um recomeço, a morte é um baita atalho. Para quem deseja um atalho, a loucura é um baita começo.

Eu não vou lhe dizer o que é uma prova de amor antes de você provar que me ama.

Mas o Raul chegou de qualquer maneira. O homem se levantou aturdido. Estava usando uma camiseta e uma calça de seu namorado. Uma batida à porta anunciava com certo estrondo o fim do encontro.
 - Cá, você está aí?
 - Sim, amor. Estou com uma visita, vou abrir.
Os dois se entreolharam estupefatos com a mentira que estava surgindo. Sorriram.
 - Fique calado. Eu vou apresentá-lo. E sente-se aí de novo.
Mas o contrário ocorreu, assim que Khármides se levantou para abrir a porta, o policial se levantou atrás dela e, descalço e de cabelos molhados, dava quase a impressão de abraçá-la por trás quando Raul entrou. Ele entrou na casa desconfiado, com uma garrafa de vinho na mão.
 - Eu... eu... trouxe vinho, querida.
 - Oi, Raul, né? Meu nome é Cuitas, Sargento Cuitas. Trabalho nesta região durante o dia...

Como o policial imaginava, era um homem de meia idade que se apresentava. A calvíce se adiantava um pouco. A barba rala nas bochechas só se apresentava mais cerrada sobre e sob os lábios. Era um velho imberbe quase! Apertaram-se as mãos. Khármides o atalhou e terminou as apresentações, dizento ser ele um amigo de faculdade, também sargento.
 - Interessante, sargento. E você não sofre muito estudando com esse bando de malucos?
 - Sofro. Mas sofro mais por essa amiga que às vezes se esquece dos amigos, né, Carmen?
 - Ah, seu apelido na faculdade é Carmen?
 - É... o pessoal não consegue dizer "Khár-mi-des" é difícil...
 - Khármides... khármi-des.
 - Linda, você ainda tem aquelas garrafas de vinho?
 - Claro.
 - Então vamos começar por elas. Sargento, você tem pressa?
 - Nenhuma.
Ela foi buscar o saca-rolha enquanto eles se sentaram-em torno à mesa de seis lugares, redonda, no meio da sala. Quando retornou, acreditou vê-los se abraçando, mas na verdade apenas mostravam reciprocamente como sabiam lutar judô. Mas eu não demorei tanto, Khármides tentava ponderar, e com a garrafa na mão ficou observando aquele velho amigo de seu pai que era agora seu namorado, se atracando um pouco ambiguamente com um falso policial que apenas conhecera e que carregava em seu bolso. Ademais, usava as roupas do namorado, amigo de juventude do falecido pai.
 - Raul. Raul. O anfitrião atendeu ao chamado e tomou do objeto, com o qual abriu a primeira garrafa. Pernameceram em silêncio se entreolhando. Depois reparando no furo sobre o ombro direito do sargento disparou "Essa camiseta é minha?"
E ficaram se olhando em silêncio. Calados tomaram um gole do vinho, cada um a seu tempo. O anfitrião os serviu novamente. A garrafa vazia. Khármides se levantou seriamente e foi buscar a segunda garrafa. Uma vez aberta, o falso sargento mirou Khármides nos olhos, segurando em pinça a base da taça de vinho e rolando entre os dedos o objeto:
 - O que mais me preocupa nela, Raul, é seu senso de justiça.
Os interlocutores estavam curiosos.
 - Veja bem, eu sou policial, o que mais vejo é o crime. O crime não me assusta, digo sem medo de exagerar, que o crime é um fenômeno normal e que se as leis tentam restringir o cidadão à sua forma virtuosa somente, elas são feitas para falhar. O senso de justiça é algo perigoso...
Khármides não acreditava que aquele falso policial era, na verdade, um policial! Tudo se revertia em seu cérebro e parecia sob luz desigual: o que ele tinha de transgressor, provavelmente aprendera no trabalho; o que tinha de melhor, quem sabe, era ser um homem comum. Um subversivo! Raul, por sua vez, ainda estava intrigado com o furo da camiseta e apenas prestava atenção ao que ele dizia. Esperava a primeira oportunidade para estapear aquele amiguinho de sua querida ninfeta.
 - O que motiva o crime, o ato do criminoso, como seu resultado, é algo normal. Agir de maneira a infringir a lei e agir de um modo reconhecido socialmente. Para quem não consegue decodificar o ideal de um lugar, a violência é uma válvula de escape; ela produz uma identidade simples de compreender, porque baseada naquilo que o ser humano tem de mais incontrolável: seus desejos.
A conversa estava tomando um rumo inesperado.
 - Eu não sou uma pessoa justa.
 - Discordo, Carmem... aquela carta que você escreveu para o jornal da faculdade era exemplar.
 - Exemplar... carta... quer dizer que você anda escrevendo para o jornal, minha ninfetinha?
O anfitrião se sentiu diminuído pela confidência feita assim subitamente pelo homem que usava seus buracos de camiseta. A frase soou extremamente desajeitada e rude, algo que ele não previra. Khármides tresolhou-o, através do cenho, reprovando. Era jovem e era intensa.
 - Anotei um trecho para ler para o major. Se vocês me permitirem.
Ela perdeu um pouco os sentidos e não acreditava que o falso-policial policial queria ler um pedaço de sua carta-testamento.
"Temos pouco a deixar do que fizemos. Isso é a desgraça do ser humano, já que a quase totalidade do que viveu é um conjunto de atos inefáveis, intangíveis e fungíveis. Você, Raul..." Limpou a garganta.
 - Mas a carta é para mim?
 - Meu caro, a carta não é para ninguém, ela escreveu para quem lesse, estou lendo para você, por isso digo 'Raul', mas posso dizer 'Khármides', 'Otávio', 'Fulano' etc... enfim... "Você, Raul, não sabe como me lembro das coisas que vivi. Todo dia evito te punir. Mas viver é penar, porque nos arrependemos; e quando não estamos arrependidos, tentamos constantemente corrigir os demais"... esse trecho é ótimo! É delicioso. Mudou minha visão de mundo: "e quando não estamos arrependidos, tentamos constantemente corrigir os demais" é por isso que levamos uma vida tão sofrível.
 - Essa carta é excelente, preciso de uma cópia disso depois. Preciso ler e reler o que minha bonequinha está escrevendo. Sua atitude sôfrega e insegura fazia com que as frases saíssem mais e mais estúpidas e ignorantes, nunca chamara sua namorada de 'boneca' nem de 'ninfeta' em voz alta. São coisas que não se dizem pela primeira vez dfiante de um falso desconhecido.
 - É como se você fosse meu melhor amigo, Sargento Cuitas.
O falso-policial levantou o rosto do papel sem saber quem dissera a frase. Contrariado continuou "todavia, cariño, eu cheguei à conclusão de que um ato apenas vale a pena e deve ser lembrado. Não a justiça que fazemos, mas a injustiça que corrigimos"... vocês vêem, é delicioso! Se acertar o que é justo é muito difícil, vamos nos centrar no que é injusto!
E seu olhos de criminoso, cansados e frementes, iam da taça aos rostos e de volta ao papel. Escolhia qual frase ler como se escolhesse uma vítima num assalto. Khármides estava suspensa, desesperada, enredada em suas próprias mentiras, confidenciara o próprio suicídio a um desconhecido que neste momento utilizava as roupas de seu marido!
"Combater o que é injusto. É injusto que o homem que primeiro violou uma mulher ainda a possua. É injusto que o pediatra, a mãe, o pai e os adultos da casa possam violentar uma criança impunimente. Vou dedicar minha morte, como dedico a vida, à destruição dessas pessoas: morte a Albrecht, anjo estuprador!" Veja bem, Raul, a carta foi publicada na seção de ficção, eu esqueci de lhe dizer isso.
 - Me devolva essa carta! Khármides tomou da mão do sargento o papel, rasgando-o.

Minha mãe, um tomate

A enfermeira o convidou a entrar no quarto. Ele ficou parado à soleira, olhando as camas, eram quatro, mas somente duas estavam ocupadas. Sua mãe estava em uma delas. A enfermeira e uma técnica em enfermagem tinham um olhar doce e sério. Piedosas. Aquilo parecia uma pintura à óleo, com o Sol das cinco das tarde despejado em diagonal sobre a doente. Minha mãe. Foi duro encontrar o rapaz, que estava morando num cortiço da Bela Vista, pago com o dinheiro do último salário. Aparentemente sua mãe o substituíra em seu apartamento. Ela o esperou por três meses naquele lugar desorganizado e sujo e fedorento. Lavou as roupas do filho. Arrumou a despensa e o encanamento. Cozinhava religiosamente o almoço e o jantar à espera daquele que nunca vinha. Relia a carta do suicídio antes de dormir. Enxugava uma ou duas lágrimas e caía no sono. Aos poucos Arlete foi compreendendo a carta: consultava palavras novas no dicionário do filho.
Ao cabo de um mês e meio já era capaz de recitar os motivos do suicídio do querido filho de cór. Sem pensar. Demitiu-se do emprego no interior. Deixou dois filhos com um ex-marido e trouxe tudo à São Paulo do Rio Tamanduateí. Começou a trabalhar como secretária em uma concessionária de carros na Avenida Pacaembú por indicação do ex-patrão de Khármides. Tentou reescrever a carta para mudar a história do filho. Porém a carta de fato estava muito bem redigida: a história não se reescreve facilmente. Relia e treslia a carta, tentando munir-se de esperanças.
Arlete uma vez julgou haver visto Khármides vagando pela Praça da Sé, como um zumbi. Achegou-se ao mendigo e quis abraçá-lo. Não era seu filho. Nos fins de semana, aos poucos, ia substituindo a tristeza pela melancolia: não havia fotos do querido primogênito naquele apartamento. É como se ele já estivesse morto. Parou de preparar spaghetti ao molho bolonhesa às terças-feiras e o bife à milanesa àsquintas; pois precisava já juntar dinheiro para contratar um detetive. O ex-marido veio visitá-la com os dois rebentos menores. Comerarm tranquilamente com um lugar a mais na mesa, à espera daquele que não mais voltava. Há duas semanas reescreveu finalmente a carta, simplesmente substituindo os nomes do cabeçalho e do fim com corretivo para canetas. Enfiou a carta no bolso e saltou do terceiro andar. E não morreu.
Quando Khármides apareceu de sopetão no alfarrábio, com aquele mendigo, que agora era uma espécie de escudeiro seu; o chefe quase voou em seu pescoço para abraçá-lo, o que enciumou por alguns segundos o Beto, Sancho Pança de Khármides.
 - Menino. Tua mãe. Tua mãe. É triste.
 - Fala, chefe.
 - Tua mãe 'tava morando no teu apartamento.
 - O contrato está em seu nome; é direito dela.
 - Não. Rapaz. Triste. Ela escreveu uma coisa p'ra você.
 - O senhor tem uma carta p'ra mim?
 - Menino. Ela saltou da janela.
No começo, eu não queria ver ninguém conhecido, foi o Beto que me convenceu a pedir algum lá no sebo. Sempre achei uma merda de idéia, mas fui. Imagina só, eu não queria ser atualizado sobre minha mãe. Não queria saber se ela tinha morrido. Ora essa. Mas saber que ela tentou se suicidar justamento do jeito como eu havia pensado em fazê-lo, foi revoltante. Um misto de raiva e de ódio fulminaram minha mente. 
 - O senhor tem ou não tem a carta?
 - Vá ao Dante Pazzanese, rapaz. Eu não tenho a carta.
E me deu vinte reais e me explicou como chegar lá. Eu queria ler a carta. Só me interessava a carta. Queria saber como ela escreveu essa carta, se ela encontrara minha carta testamento no lixo, rasgada daquela vez em que aquele babaca a pegou no chão e ficou olhando meu prédio do outro lado da rua. Estúpido. Tentei explicar ao Beto a importância de irmos imediatamente ao Hospital ler a carta. Mas ele se ateve ao principal somente, como sempre, por ser um homem muito prudente e incrivelmente capaz de irritar minha pessoa com sua calma e estranha normalidade.
 - Sim. A carta é importante. Tua mãe pode estar morta neste momento. Vâmo' lá, Kharma! - com seu sotaque baiano e como quem soubesse o que a palavra 'kharma' significasse.
 O resto não me interessava. Tomamos um belo banho os dois no cortiço, emprestei-lhe minha melhor roupa, que ficou muito larga. Vesti-me rapidamente e partimos.
Porém o resto era interessante: a enfermeira chefe me garantiu que Arlete, esse é o nome da minha mãe, chegou ao hospital vestida com minhas roupas, com o cabelo curto, como o meu. Junto à soleira eu fiquei. Beto não pôde entrar e me encorajava de longe. Me encorajava a fazer a coisa certa, essas exortações mendicantes que me assestavam tão terrivelmente. Tive medo de vê-la morta de perder meu ímpeto de encontrar a carta. Pensei que haveria muitos trâmites burocráticos, caso ela morresse e que isso não era sua culpa. Agora, pensando melhor, talvez tudo seja parcialmente sua culpa.
Vê-la como um vegetal inerte despertou algum tipo de ternura em mim. Meu olho marejou, apesar de ela haver tentado roubar minha morte. Ela tentou morrer por mim. Quis me livrar do peso de existir, de algum modo. Morrer o meu suicídio. Vegetar onde eu deveria vegetar. Acariciei seus cabelos, que estavam tão macios. Eles sempre foram cabelos tão bonitos, de um castanho escuro tão iluminado. Não era uma cabeleira basta que ela tinha e terminava em sutis caracóis. Uma grande mecha branca atravessava o topo de sua cabeça. Como as folhas de outono atravessa o campo, levadas pelo vento; como os ramos secos de um tubérculo ao léu. Sem flores mais; o lençol flutuando no ar: a auxiliar refazia a cama ao lado e o facho de luz iluminava o rosto encerado da suicida por procuração, o tipo mais medíocre de autoflagelo. Era minha mãe.
 - Ela é como um tomate. Foi a frase mais estúpida que poderia haver saído da minha boca. Ainda agora tenho certeza de não havê-la pronunciado. Mesmo assim a enfermeira me reprovou com os olhos. Esperava uma reação mais sôfrega. Eu sei que ela não acordará mais. Talvez no dia do juízo final. Talvez tenhamos de matá-la, caso a eutanásia seja aprovada. A enfermeira não se conformava com o fato de eu acariciar a doente como se ela fosse despertar a qualquer momento; como se eu a consolasse por ela não saber executar o plano que estava na lista de afazeres e na carta de despedida.
 - Bem, rapaz, até que enfim você veio. A enfermeira dispensou a auxiliar.
É tão triste entregar essas cartas. Como lhe direi que ela quebrou o pescoço? Nunca mais andará. Nunca mais abrirá os olhos. Nunca mais vai sorrir. Nunca mais vai cantar, assoar o nariz, nunca mais vai chorar.
 - É como se ela tivesse conseguido se matar, sem morrer.
Essa é a observação mais fria que já ouvi de um filho de uma pessoa em coma.
 - Onde está a carta?
Ele me olhou de repente, como se recobrasse vida e buscasse um objetivo mais profundo. Vasculhou com os olhos e cabeça a sala. Fixou-se em mim; fixou-se em minhas mãos; fixou-se em meus bolsos e repetiu a pergunta de maneira mais ríspida - "e a carta?" - e se aproximou. Um louco gritava do corredor, discutindo com enfermeiros e seguranças. Queriam levá-lo embora. Estava bem vestido e começou a entrar nos quartos pedindo dinheiro. O Mateus, menino forte e gigantesco veio me dizer o que estava acontecendo. Refleti um pouco e deixei que o imbecil ficasse. Desde que alguém ficasse de olho nele. Agora esse rapaz, esse rapaz não quer consolo, não quer a mãe viva, ele só deseja a carta. Meu deus, eu não estava preparada para isso; não estava pensando em entregar a carta sem vê-lo espernear e se debulhar em pranto e nênias. Desgraça! Mesmo sendo enfermeira há mais de 30 anos, ainda me surpreendo. E agora? Eu não lhe darei o testamento materno sem um boa desculpa sua para a pressa. Imagina, reservei toda a manhã. Gostaria muito de conversar com alguém que se mexe e pisca os olhos, além das auxiliares de enfermagem.
 - Estou disponível, caso queira falar...
 - E a carta?
Como ele é ríspido!
 - Tenho pressa, vocês estão levando meu melhor amigo embora.
 - Mas ele estava pedindo dinheiro, senhor... senhor... Veja bem, aqui as pessoas estão muito fragilizadas, perderam entes queridos; ou veem um parente em coma - como o senhor - e reagem das maneiras mais estranhas possível. Eu compreendo.
Estou tentando fazê-lo dizer o que sente. Estou fazendo meu melhor. Ele não quer conversar comigo.
 - Eu não posso lhe entregar a carta, rapaz, sem lhe dizer uma coisa ou duas sobre a maneira como ela chegou aqui.
Então narrei de modo conciso e até desrespeitoso, como ela tinha roupas masculinas quando chegou, como se recuperou com dificuldade da queda e dos estilhaços de vidro que lhe perfuraram fígado e baço, pernas; como ela possuía um hematoma enorme nas costas, do qual cuidamos zelosamente. Pareceu ouvir. Balançou a cabeça. Pegou a carta e a abriu. Então um fogo intenso abrasou suas bochechas e testa. Parecia engasgar. Depois explodiu em uma gargalhada contorcida e feia, desbragada, bateu a mão nas coxas, se dobrando. Sua testa se iluminava com o suor transpirado. Sua testa estava alumiada. Riu até chorar. E o idiota que gritava do lado de fora parou de falar. Ouvíamos apenas aquele riso tétrico, aquele riso dilacerante. O riso atraiu os enormes enfermeiros e seguranças. Alguém enfiou a cabeça no quarto e disse que "ela tinha mesmo roubado a carta, Kharma?" e em seguida foi imobilizado por um enfermeiro. E então o menino acordou de seu transe estúpido e pífio. E partiu. Alegra-se com o quê?

Pílula

O ser humano é algo triste. Mais triste ainda é sabê-lo. Tenhamos esperança, todavia: Khármides ainda não conseguiu morrer como gostaria, mas pelo menos recuperou sua carta-testamento. Tudo voltava ao normal.



Quando me transformo num homem. Ou numa mulher.

A carta se rasgara e as lágrimas caídas. Raul assistiu de maneira estúpida a cena e sentiu um ciúme mais idiota do que o ciúme ordinário. Queria ser ele a infligir aquele tipo de dolor à sua amada. Ler uma carta triste, uma oobra de ficção sua. Triste. De seu ponto de vista, algo estava ocorrendo entre sua namorada e aquele desconhecido. Algo sujo e inconscientemente lascivo. Ele viu toda a seqüência em sua cabeça: a carta se rasgava, Khármides tombava ao chão em busca daqueles pedaços de papel, ofegante, limpando o nariz e os olhos intermitentemente. Ele sentia o que ela sentia e concomitantemente não o sentia. Havia uma transição rápida e progressiva e tensa entre a emoção pública dela e a reação mental dos interlocutores. por um segundo Raul foi Khármides. Um milésimo de segundo. Invadido pela vergonha e raiva exaladas por sua jovem namorada. Invadido. Eu queria causar essa dor, conseguir causar tanto sofrimento. Gostaria de ter esse dom. Ele pensava, mas durou um segundo. E sabia ser feio refletir mais a respeito. Havia seu ciúme, mas a vergonha, raiva se sobrepunham. Khármides. Khármides. Havia duas pessoas ajoelhadas e chorando e recolhendo pedaços. De papel.
Um pedaço de papel. Uma carta. Rasgada e amassada. Amarelada. Vemos que ela porta uma mensagem de alguma relevância para alguém, já que o papel está molhado por água salgada e podemos presumir com segurança se tratar de lágrima e de suor. Nenhuma mão a segura por completo. Está cindida. Metade está em mãos de homem. Metade em mãos de mulher. Menos da metade na verdade. Este papel é centro do universo. Esta lágrima é o centro do universo. Este suor são pequenas galáxias. Estes dedos são meteoros. E este nome escrito logo abaixo - "Khármides" - deve ser o nome de Deus. Ou o nome deste objeto. Rasgado. Explodido. Espalhado. Treslido e tresparso. Um mundo nasce neste papel; é uma catástrofe; mas todo nascimento é um desastre, uma fissura. Trescatastrofado. As pessoas que se entreolham não se reconhecem mais; foram absorvidas pelo universo - o papel - e seu vórtice - a lágrima - ou por suas galáxias - o suor - e seus meteoros - os dedos - e estão de pé como quem aguardasse o anonimato no palco do teatro. O desastre acabou. Cai o pano.

Enquanto eu sofro o escritor

Enquanto eu sofro o escritor insiste com suas hipóteses estúpidas, prefere comparar Khármides a um pedaço de pão, prefere imitar manuais de instrução, prefere criar verbetes psiquiátricos, prefere inventar animais e comidas chamados Khármides. Enquanto eu sofro, pensando que o escritor está em prol de mim, do meu lado, na verdade está me rondando e descrevendo, como se eu - eu! - fosse um pedaço de pão, um pezzo di legno, um pangaré Rocinante. A história do mendigo toda é mentira, e da enfermeira e do suicídio. Tudo isso é degradante. Meu nome não é Khármides em primeiro lugar, não é Carmem, nem é Carmo, Carmelo, Carminha, Caminha, Carmela, Carma, Calma, Kharma ou Camus. Meu nome não é nada disso. É Khármides. E depois, eu nunca mantive uma lista atualizada sobre meu planos para o suicídio. Eu não sei fazer isso. Muito menos eu morri por ocasião de um acidente vascular cerebral. Um suicídio não é a mesma coisa que um derrame e tratar de um efeito de uma queda como a principal causa de um óbito seria subestimar meu ato. É óbvio e está claro que a queda é o caso. O resto é conseqüência. Agora ele tenta retomar o fio de suas idéias malucas e odiáveis sobre a vida e sobre a literatura e sobre a realidade. Pensa seriamente sobre como misturar essas três de maneira incoerente utilizando, contudo, uma linguagem - poética - perfeitamente compreensível, de tal modo que todos se identifiquem com o gênero de loucura controlada que ele tenta fingir. Khármides.
Eu já entendi o que estamos tentando fazer aqui. Diversão. Entretenimento. O sofrimento alheio é, sem a menor sombra de dúvida, uma das mais elevadas e - também por isso - uma das mais fáceis maneiras de atrair o público humano. O sofrimento é absorvente. Entropia. Um palhaço e um homem na corda bamba. A excitação do perigo e a iminência do sofrimento mantém o espectador em suspenso. Todos expectam o homem na corda bamba; respiração suspensa. A excitação vence a alegria grosseira e suave do palhaço. Faze-os sofrer, é o que pensa o homem com seu bastão, olhando adiante. Faze-os doer. Traze-lhes as enfermidade mais invisíveis e mais aflitivas. Eu já entendi tudo. Perder a definição, a identidade. Tornar-se ora um invertebrado, ora um paralamas, ora uma bicicleta, ora um pneu, ora o asfalto, um rio, um peixe, uma nuvem, um homem, uma mulher. Ir a qualquer lugar e esquecer-se do chegar. Faze o leitor girar em vão, em falso. Um homem é um homem, até que se diga o contrário. Então está morto o homem. Ele é um ponto. Morto.
Mas a morte não rouba a essência do homem. Ele não a tinha já antes de morrer. Se foi feliz para tanto, este homem ao longo de sua vida transferiu toda a inessência a amigos, parentes, bicho domésticos, filhos, se os teve, colegas de trabalho. E inimigos e adversários. Se foi feliz para tanto, antes mesmo de deixar de existir ele já estava vazio, chegara a esse estádio de liberdade e de conhecimento da verdade que nos permite a todos agir corretamente em todas as situações. Ah... porém são raros aqueles que conseguem se despir de sua própria inessência antes de partir. A maioria nela se aguerre, cria trincheiras, reifica a dor e os traumas. Pois seja, leitor, a essência do ser humano aquela cicatriz um pouco saltada na derme, aquela pele tênue e aparentemente esticada; ou a vala escavada por um acidente grave.
Se te mostrássemos uma face alegre, um amor que se realiza, ou mesmo um evento doloroso simplesmente, ora, caro leitor ou cara leitora, nos abandonarias com um tolo sorriso no rosto, como se tivesses encontrado algo. Na tua cabeça haveria algo chamado "Khármides". Todavia o que andamos tentando mostrar é que Khármides pode estas ao teu lado neste momento. Tu mesmo podes te tornar Khármides quando quiseres. Põe-te no lugar de cada coisa, meu caro, põe-te aí irresistivelmente; e depois te desloca e repousa alhures. Ou repousa um segundo nenhures. Fecha os olhos. Morre. E então vive.
A alegria não é tão absorvente. Parece uma emoção derivada. A excitação, o oposto. Tu, leitor, vais fechar este livro, esta página, vais esquecer o que foi dito, vais odiar-me, porque eu não sou Khármides e porque te enganamos o tempo todo. Desonesto nunca fomos, te garanto: nunca quisemos te alegrar, desde o começo queríamos fazer-te sofrer e doer muito. Seriamente. Tentamos o suicídio em nome disso, a amizade com mendigos, a dor do trabalho diário. Recorremos eventualmente a expediente confusos. Te deixamos em suspenso com comparações absurdas. Todavia nunca desejamos aliviar tua existência. De maneira nenhuma. E nossa maior satisfação seria conseguí-lo. Com sinceridade. E enquanto eu sofro, por motivos indefinidos, não porque não haja uma causa, senão porque as causas são concomitantes, o autor me contempla, excitado e vigilante, como um vampiro deitado em uma banheira só sangue. Donde o sorriso.
Eu sinceramente,
Khármides.

Definição de ser humano

Ser humano é Khármides.
Ser humano é Khármides.
Ser humano é lhama, lã, lá, ló, law, lama, lacre, larva, lesma, lâmpada, lipstick, luz, luz, licor.
Ser humano é Khármides.

Último capítulo final



Falta oferecer uma explicação inicial aos caros leitores e caras leitoras sobre esta obra que lhes parecerá tão complicada. Tratamos de celebrar a vida em todas as suas formas da maneira mais rigorosa, conforme concebemos a ideia de "rigor", que é precisamente um rigor negativo. Não desejamos com isso estragar toda o carisma de nosso personagem. Khármides possui algo de vitória antes mesmo do diálogo começar. É o sábio que vem provocá-lo.

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