A Cidade Infinita

Origens de São Paulo de Piratininga

                                                                                                              para Ignácio de Loyola Brandão



(i)

o Khaos já estava antes da chuva,
e ao contrário do que se pensa,
na celeuma as coisas existiam separadamente,
desde o começo.
o Khaos não se dava à vista, tal qual a cidade,
que existe dentro dos nervos e das raízes da árvores.

(i)bis

São Paulo de Piratininga talvez seja uma ilusão,
fantasma falaz e cortiço nefando. A garoa é certa, no entanto.
Enfim, desse estado caótico prioritário
descendem nossas maiores aporias:
o afogamento de rios históricos,
a secura das auroras cinzentas,
a umidade branda de fumaças,
o trânsito paulatino em vias expressas,
a prensença de moléstias já eliminadas em macacos,
a pobreza,
o suicídio inconsciente de usuários de crack
a pujança dos lixos,
a conjunção carnal virtual,
a vaga de trabalhadores em atividades ilegais,
contados como população ativa
e contados no total de criminosos

(ii)

Veio o toró primeiro
e chacoalhou as posições das lamas
porque escorria de cima abaixo
de fora adentro
enturgescendo o barro.
Disso nasceram nossos primeiros habitantes:
uma cave de galerias molhadas, onde há vinho de má qualidade,
um guarda-livros gordo e moreno,
uma moringa sempre cheia de água,
uma capivara frígida,
uma estátua de mulher chorona,
 presumivelmente divindade urbana,
uma faca cilíndrica, sem corte, sem ponta, sem cabo,
um barranco extenso e flácido, também moreno.

Com tal exército,
não foi possível superar as aporias.

(iii)

o Khaos não causa qualquer coisa,
ele é bastante e somente se renova,
Khaos e Kosmos não são opostos, contrários ou contraditórios.

o Kosmos é um dos atributos do Khaos.

(iv)

a garoa se repetia,
tudo já existia separadamente e não teve origem,
nem os ursos de pelúcia,
nem os pratos descartáveis,
era tal a cidade que cada elemento parecia durar eternamente,
as notas promissórias, cheques protestados,
os políticos eleitos em virtude de suas vozes,
as vozes dos filhos dos homens
e os próprios homens,
a cidade era tal que não importava a ninguém.

(v)

Depois dos paradoxos, vinham os moradores,
 num fluxo incoerente de fonemas;
o Khaos empresta à tempestade sua aura,
como quem empresta uma ascendência a um filho
   e em São Paulo,
tal herança possui dois nomes:
  ou Fogo ou Noite...

(v)bis

quando as nuvens se nos precipitam sobre,
    um marinheiro do ar é constelação
de geometria visibilíssima,
esquadrinhando gotas,
soprando entre tímida e cínica...
   um marinheiro do ar, um lobo vulcânico,
   um bloco de cimento morto, porém vivo,
foram esses patronos alegóricos
a verter-nos esse líquido filho do Khaos:
tão turvo e tão ardido!
E denominemo-lo pira e denomine-lo sombra,
dá igual para o efeito transformador
e reflexivo da coisa

(v)bis

Não há oceano ou orla na fríngia
de São Paulo de Piratininga;
houve de determinar nosso Khaos,
pelo decreto seguinte,
a seguinte incoerência:
que nosso horizonte fosse curto e vertical;
que as nuvens fossem o mar,
e os rios, só matadouros de salivas.

(v)bis

De fato, a poucos importava este céu,
o além, o horizonte, senão a uns tais,
percebê-lo, das banais coisas a mais;

Afinal... o futuro é o nosso melhor réu.

(v)bis

A chuva é o devir,
o adiante!, Nadir;
acima, a esperança;
da garoa à garoa...

os acontecimentos caem, não o-correm...

Como os demais povos olham o horizonte
para definir seus projetos,
nunca contemplamos o acima, o além;
desinteressados do clima,
nunca fixamos um plano,
desimportantes para nós mesmos,
nossa visão pára nos frisos, nos horríveis pisos e paredes de boteco:

o habitante de Piratininga jamais observa o futuro,
equilibrando-se sobre os edíficios feiosos.

(v)bis

neste momento,
alguém está deitando mijo e choro,
no leito e na raiz. Em praça pública.

(vi)

no Princípio havia emanações,
a água escorria em bloco, trazendo carne e fogos,
de cima abaixo, adentro, afora...

Os riachos da cidade de São Paulo de Piratininga
          são formados basicamente do mesmo visgo:
sangue pisado,
sangue novo,
corpos abortados,
musgo nontóxico,
sabão de côco.

Eles são em número de x< 120 (subtraindo-se os cursos naturais de esgoto):
      Anhangabaú
Tamanduateí
                 Ipiranga
Sumaré
 & outros eflúvios amaldiçoados,
dentre os quais contamos nossos fluidos íntimos.

(vii)

Do cruzamento dos primeiros moradores
surgiram os filhos dos bandeirantes,
    porque os bandeirantes são imortais,
sem nascimento e infinitos.
O único papel do Khaos é nomeá-los,
diferentemente,
de acordo com a afinação dos motores de ônibus:
brrrrrrrrrrrrrrrrraposo trrrrrrrrravrrrrrrrrrres!
brrrrrrrrrrrrrrrrrrobrrrrrrra grrrrrrrrrrrrratrrrr!

(vii)bis

Medidos em comprimento e espessura,
os seres humanos de São Paulo são:
finos,
rugosos,
escorregadios,
obtusos,
abrangentes,
amanteigados,
insossos,
atomatados,
carrancudos.

(viii)

o Khaos se ignora

(ix)

a autoignorância do Khaos é importante
nas auditorias das contas públicas,
na manutenção segura das aporias,
na repetição dos fonemas em frases desconhecidas,
na proibição da eutanásia.

(x) EPÍLOGO

A chuva é uma obsessão da nossa natureza,
 o que se repete é o dia,
 a água é a mesma acima, abaixo, adentro,
 as nuvens fazem somente iluminar os nexos
 ligando o céu à terra.

Acredito que a própria existência da palavra
se deva ao erro:
ao dizer "chuva", "toró", "dilúvio", "garoa", "enxurrada",
indicamos não um fenômeno natural,
pronunciamos um defeito de nossa alma,
um defeito que aprecia a repetição,
não a água.

(xi)

A chuva não possui licença.
Hemos de condená-la!
Como chega subitamente
devastadora, procelosa e infensa
a exigir-nos humanamente
que comunguemos n'água,
    superhumanamente?

A chuva não possui qualquer licença
decerto, para desenvolver atividades
de cunho comercial ou filosófico.
Trata-se de mera futilidade aceitarmo-la
bebermo-la, sentirmo-la, contemplarmo-la.

Condena-la-íamos,
se ela não se ignorasse;
e eis minha última palavra:
não se julga o que se não discerne.

(xii)
Bafejo. Garôa. Um homem. E sus! Lentidão...
Marulho. Orgulhos. Nos olhos. Miúdo.'bandono.

(xiii)

Ninguém perguntou às esquinas aonde,
mas elas foram se contorcendo até chegar...
Hoje, quem pensa ser mal feita a cidade,
nem imagina como as esquinas sofrem.

(xiv)

Um observador centenário pode jurar que as ruas se movem,
levando a lugares diferentes
dizem que antigamente a Rua Libero Badaró levada ao teatro
e a Rua São Bento outrora levara à moradia do principal mandatário.
Todavia, conforme o regime intenso de chuvas
 e as características geológicas do solo
 elas vão escorregando, escorregando,
 até cair, até abrir, até estreitar.

O mesmo observador propõe um desafio:
"Permanece parado no mesmo ponto de uma dada rua; em pouco menos de duzentos anos ou estarás no topo da cidade ou no fundo de um rio ou sob os carros"

Tudo muda e nada permanece:
lembra-te bem desta cidade e a partir de agora ela já não existe.

Renascimento de São Paulo de Piratininga



                                                                                                                                     para Roberto Piva

A areia é cinza
O concreto e a poeira são soluções de vácuo e areia com densidades distintas.
A cidade respira e inala o ralo cimento.
Há em cada esquina e vigiam
Em fila índia e irritados os paladinos espessos:
    Uma banca de jornais sem aberturas eternamente iluminada;
    Uma esposa abandonada no altar por um polígamo impotente;
    Um rato morto há mais de duas décadas
A que se não deu enterro digno;
    O lábio molhado de uma adolescente que deixa um picolé derreter;
    As doutrinas aristotélicas escritas em espelhos côncavos.
Existe uma chance grande
De estarmos repetindo os erros do passado,
Segundo um nobre poeta japonês. Mas como não entendemos japonês, continuaremos o curso normal de nossas pequenas vidas, sem interrupções de maior relevância. Babaremos quando o sono chegar, sonharemos com coisas que vimos durante o dia, enquanto as putas dão palestras noturnas aos deputados e estupram travesseiros.
Não entenderemos nunca o japonês, segundo a Lei nº 77.863 de 16 de maio de 2011, a qual acaba de ser aprovada por ampla maioria em nossa reputadíssima Assembléia.
Um homem ontem dizia frases sem sentido
E foi preso porque desconfiaram que fosse japonês e, portanto, ele não compreendia o que estava dizendo, segundo a referida lei.
Um ser humano não pode desperdiçar palavras em idioma desconhecido, reza a melhor doutrina constitucionalista da excelsa terra paulista, artigo 8º da lei supracitada, parágrafo único.
O Estado de São Paulo, como qualquer outro ente real, possui dois aspectos: horizontal e vertical. O horizonte é uma mistura de fumaça de cana-de-açúcar, edifícios, carvão vegetal e o pó narcotizante de cacau. O vertical é o limite extremo.
Há uma continuidade perturbadora entre as barbas dos mendigos e a lembrança de Tolstói em São Paulo.
Poesia:
Lá nasce, onde a ribeira jaz morta,
Uma coorte, uma vila e uma classe.
E o céu de gaze, grisalho, já aborta
Sem sorte, chuvisco fino, sem face.

No passe do descompasso, o sporte
De viver da arte stúpida do disfarce,
Da farsa: os homens tem por orto
Onde o desastre, homens de Marte.

E sem guerra de guerreiros, matam,
Em covardes se fogem e se’ncerram,
Aqui onde a cidade é qualquer vila.
Temem perder-se no nada, na vida,
Onde a cidade é sombra, pó, asfixia,
E sem guerra de guerreiros, matam.

E sem guerra de guerreiros, guerram.

Prosa:
A administração carcerária do Estado amplia seus tentáculos com prédio cada vez mais seguros e isolados. O isolamento garante o império de uma normatividade excepcional dentro das instituições. A segurança garante que a sociedade civil não vai incomodar os habitantes do panóptico piratiningano. A própria existência dessas instituições de exceção à liberdade não é vista como problemática para a reprodução da sociedade, porque o modo de vida piratiningano adota como paradigma de cidadania a segurança, não a liberdade, e vive tão isento do ônus da liberdade, quanto seus congêneres encarcerados.
A liberdade nestas terras é combatida por uma ideologia difusa e tímida de indiferença e utilitarismo. Entre a realidade, que se reorganiza por valências de utilidade privada e de segurança para todas as utilidades adjacentes ao indivíduo, e a utopia, que se reduz à maximização da utilidade apropriável pelo homem singular e a apropriação sem limites de novas utilidades, o piratiningano exprime em arquitetura, discursos e atitudes o único desejo escatológico que para si é de fato problemático: o desejo de segurança.
É todo um modo de vida que exclui a liberdade por definição. Vejam o comportamento das instituições concentradoras da violência - polícias, exército - e da disciplina - prisões, escolas, hospitais - para saber que esse país - São Paulo, que é o pouco do que conheço - é um país frouxo nas instituições que reproduzem e mantem nosso nível vital de humanidade; mas é um país perfeitamente preste a fazer tudo ruir diante da segurança.

Poesia:
o mar não existe nos teus olhos, Soraia,
que são negrores de doze nectarinas,
e teu silêncio não soa a conchinhas,
tua saliva não quebra na minha praia.

Tua simetria, tua silhueta não calham,
tuas nádegas são suaves, pequeninas,
E esta tua preguiça, gigante e felina:
Sim! A perfeição humana tem falhas.

Somos todos da mesma cepa e plano,
apesar de meio estéreis, filhos d'asnos,
apesar de indiferentes, como os anos
apesar d'impulsivos, como o nojo e o asco.
Soraia é perfeita e errada: paulistana!

Só os burros sabem como teimo tanto.
Só mesmo'os burros sabem como a amo...

prosa:
Sorrir e chorar nesta cidade é mais importante do que escrever um livro;
Ajudar a esse homem nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;
Dar dinheiro a essa mulher nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;
Xingar meninos, espancá-los, dar-lhes o corretivo devido nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;
Conduzir o carro o mais rápido ao seu destino, quase atropelar pedestres, quase atropelar os cães, quase atropelar os filhos nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;
Descansar por horas, olhar o teto por dias, levar semanas para escolher o melhor lençól, o melhor colchão, o melhor sofá, o melhor travesseiro, a melhor almofada, o melhor cobertor, dar-se por satisfeito durante meses a fio com o que a vida reserva para si, sorrir e chorar, dar-se por satisfeito por anos a fio, ver tranqüilamente o passado diante dos olhos à hora extrema, dar-se por satifeito com o destino geral dos vizinhos, assegurar-se de que ninguém é melhor do que ninguém, sorrir e chorar para sentir o seu ser, sorrir e chorar para sentir-se bem, sorrir e chorar para ser feliz, dormir por décadas como um vegetal e acordar atrasado para o trabalho, subornar o policial, subornar pessoas na rua, subornar detetives, subornar políticos, subornar os fiscais, subornar os gatos, os pombos, os ratos, garantir a vitória final e o êxito pessoal de si, sorrir e chorar e dar-se por satisfeito enquanto espanca meninos e suborna mendigos, usar eventualmente álcool, cocaína, crack, heroína, maconha, ácido, óxi, ecstasy, cogumelos, cauim, santo daime, chá de cipó, chá de papoula, anis, rapé, giz, cheirar poeira, observar a poeira baixar, observar a poeira subir, observar a poeira se condensar e capturar os pulmões, o cérebro, a alma, descansar à hora extrema e sorrir com o passado diante da memória, onde se espanca meninos, mendigos, se queima dinheiro em frente à favelas, se suborna a poeira, sorrir e chorar nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro.

poesia:
Neusa, viver não compensa
é nadar no espesso'afogando,
olhar o Sol, quase doença,

eu preferia ficar me drogando...

Machuca estar na vida, densa
é a cicatriz se acumulando
sobre a tês, grossa e tensa;

eu preferia ficar me drogando...

Nem à dor o sorrir é ofensa
nenhum despudor nefando,
lascivo, despido de crença;

eu prefiria ficar me drogando...

O excesso, a falta, a dança
a dança dos dois, amando,
ilude, mas ninguém pensa:

"Eu prefiria ficar me drogando..."

Aos meninos na rua, Neusa,
sempre digo "Cheira!" quando
buscam em mim uma certeza;

Nesta cidade só de beiradas,
Nesta cidade, em suma, de pó,
Nesta cidade cinza e preconceituosa,
Eu prefiria ficar me drogando...

prosa:
Há dois dias sinto uma dor de dente que muito me lastima. Tenho metade do rosto latejando todo o dia, como se fora um sinal de trânsito "Homens Latejando". Meu maxilar está começando a inchar e meu vizinho já me perguntou se preciso de ajudo, é óbvio que não preciso de sua ajuda. Imagina, um senhor de meia idade, um fracassado, vendedor de sapatos, um pulha, vive trazendo prostitutas e outras serviçais para dentro de casa. Meu andar parece tremer quando ele as traz. Meu prédio parece latejar... Claro que preciso de um dentista, basta olhar meu maxilar, é óbvio que eu teria ido já a um, se eu tivesse dinheiro suficiente. Mas não vou pedir um empréstimo, nunca, controlo muito bem minhas finanças e dentro de três meses poderei visitar um dentista. Caso estejamos em um estágio avançado de destruição das raízes e nervos do dente, em seis meses poderei pagar uma operação. O porteiro, homem simpático e cuidadoso, me disse que posso procurar o sistema público, uma unidade básica de saúde, um hospital eventualmente. Outro conselho genial: posso sempre buscar ajuda no setor público, eu e os outros catorze milhões de doentes, enfermos, manetas, ceguetas, moucos, velhos ranhetas, cães raivosos, enfermeiras imunes a bactérias que destruiríam sozinhas dezoito nações indígenas, hanseníticos, usuários de cocaína. Meu rosto está começando a doer e meus molares estão ficando moles, eu já notei faz uns dois dias que eles estão moles. Eles estão muito moles e a gengiva está inchada. Meu professor telefonou hoje e me perguntou "Como está o dente?" eu respondi "Como o senhor sabe do meu dente, professor?!", como ele sabia, se o inchaço começou a dois dias, "Ora, como eu sei, você me falou dessa dor há quatro meses...", "Impossível, faz só dois dias que..." ele gargalhou do outro lado, senti-me ridículo mesmo, que memória essa minha, "Você precisa de dinheiro?" perguntou-me com bonomia, disse-lhe não, sem oferecer explicações e disse que não participaria mais dos seminários à Universidade porque estava muito ocupado com a tradução de Cioran. "Relaxa, rapaz, não há pressa, porque o editor disse que, de qualquer maneira, o livro só sairia ao próximo ano", "Sim, professor, mas eu dependo das traduções, quanto antes acabe essa, tanto antes arranjo outra" e uma dor cortou minha fala, como um sinal de que eu não precisava agüentar tanta bondade, como um daimôn socrático, eu precisava de dinheiro, eu tenho cá minha dignidade e não estou disposto a ser humilhado só porque me esqueço eventualmente de algo. Por alguns segundos hesitei com o telefone na mão, entre desligar ou não, ouvi levemente meu professor falar do outro lado - alô? Alô? - e agastado o desliguei. Dinheiro, é claro que eu preciso de dinheiro, e por que os molares valem tanto? Vou ao dentista, estou absolutamente decidido a ir ao dentista, todos sabem disso, todavia, preciso de mais dois ou três meses de reservas. Quem sabe se até lá o caso não se simplifique, e o dente desinche ou os perca de uma vez? Se isso ou aquilo ocorresse, poderia usar meu dinheiro para contratar uma faxineira por um mês. Se eu souber negociar os preços, ela poderia até passar minhas roupas, fazer café. Que maravilha! Uma mulher andando pela casa de novo. Não sei se meus dentes valem tanto quanto ver uma mulher passear pela sala mais uma vez... Meu professor tem dó de mim, eu sei. Quando tentei interferir no último debate que tivemos sobre minha tese, ele me atalhou paternal dizendo "Você anda sem tempo para seu texto, Ibrahim, o que está acontecendo?"; são as traduções, ele sabe disso, são as traduções. Quando é necessário fazer-se ouvir, o que ocorre? Traduz-se! É o que eu faço eu traduzo o tempo todo. O editor me liga e diz "Ibrahim, tenho um texto em francês daquele sociólogo, sobre a Questão Palestina, você consegue traduzir antes de sexta-feira?" Eu consigo, eu consigo mesmo, em se tratando de tradução, eu posso tudo. Penso algo, todavia não sei dizê-lo ou escrevê-lo, fico por horas olhando o computador, olhando a folha em branco, olho o céu, não posso escrever nada no céu... Aquela palavra em hebraico, como era?... O papai dizia... Ou era em iídiche? Arschloch! Não perco tempo refletindo sobre as frases que me faltam na tese, parto logo para as traduções. Meu professor não pode me ver com desdém, porque aprecia a extrema reverência que lhe dedico. Para ele é como manter um súdito, no sentido emocoinal, todo mundo sai ganhando. A secretaria do Departamento de Filosofia não sabe meu nome, apesar de eu ter lhe repetido diversas vezes "I-bra-rim", "I-bra-chim", "Eee-braa-eeeemmma". Ela não gosta de mim, me olha com desdém, nunca sei que palavra lhe dizer. traduzo um monte de coisas em suas malditas fauces, já nã sei se domino o português, que é minha língua natal, quero dizer, maternal. Então são as traduções que eu faço das coisas ditas por outras pessoas que me fazem perder tanto tempo, se é que você me entende. Empresto aqui uma expressão da oratória antiga, atribuída a Catão, que dizia "rem tene, verba sequentur". Ás vezes passo horas refletindo sobre esses chavões de oratória e não chego a qualquer conclusão. Meu professor não me odeia, porque eu sou uma pessoa muito dócil e leal. Na verdade não sei porque não me odeia... Na verdade não lembro quando meu dente começou a latejar, acho que foi ontem, anteontem, é até onde vai minha memória. Como se diz 'dente' em húngaro mesmo? Minha mãe não vai me ligar hoje. O editor precisa daquele texto antes que eu parta dessa para melhor... É óbvio que eu não tenho tempo para me dedicar à minha tese, se eu não estivesse traduzindo a pilha de textos que ele me envia a cada três semanas, porque ele é o professor mais produtivo da Universidade, o mérito é parcialmente meu. Nunca vou terminar minha tese. "Rem tene, verba sequentur", "rem tene, verba sequentur", e o inverso não seria original e igualmente verdadeiro? "Verba tene, res sequentur", sim! "Encontra uma idéia e as palavras seguirão" ou "encontra as palavras, as idéias seguir-se-ão"... Nossa, que original! Estou surpreso comigo mesmo. Não estarei traduzindo alguém? Esse pensamento me aflige muito. Sinto até uma pontada na nuca. Uma frase só para mim, nesta cidade, é como uma ilha paradisíaca. Sem fim.

Poesia:
Se não houvesse cinza,
não havia São Paulo
de Piratininga.

prosa:
Ontem esqueci de traduzir uma frase de um texto do "Spiegel", semanário alemão. Ausente a frase, o autor parecia defender a política de fechamento das fronteiras entre os países europeus, em franco ataque ao Acordo de Schengen. Não reli o texto, enviei-o sem reler, como sempre faço. Trata-se de uma prerrogativa minha a de terminar minha tarefa no calor do momento, como se fora uma obra de arte. Como se fora a última frase que eu escrevesse: "O Tratado de Schengen e os países signatários parecem diante do impasse [frase faltando "Um duro golpe no bloco europeu em geral, que se baseava entre outras coisas na livre circulação de pessoas, nos recuperaremos?] Esperemos que sim."
Meu editor achou o autor muito reacionário, disse-me Não publicarei, Ibra-him, nada contra teu trabalho, mas o cara espera que o Acordo seja destruído, entende?
Olhei o original, dei-me conta do erro imediatamente, mas como um daimôn novamente forcejasse por manter minha honra e dignidade, afastei o telefone do rosto e sussurrei Errei...
Desliguei o telefone e enviei um e-mail ao chefe dizendo: "Verifiquei o texto, o autor parece titubear. Acho melhor não publicar, mas se você não se importar, vou tentar vender o texto para a Folha de São Paulo, o Valor, a IstoÉ, o Diário ou o Estadão. Abraço, Ibrahim." Curto e simpático, como sempre, curto e sincero, curto e simples, como eu sou. Duas horas sentado no banheiro lendo enquanto cago não me parece algo exagerado, não. Exagerado é não ver nunca o Sol nascer, exagerado é não contemplar nunca a arquitetura na Rua São Bento ou Quinze de Novembro, excessivo é mijar na rua, cuspir na cara, arrotar à mesa. Ler o jornal e uma gramatiquinha de latim enquanto se defeca não pode ser anormal. "Ros-a, ros-am, ros-ae, ros-ae, ros-a, ros-ae, ros-as, ros-arum, ros-is, ros-is", decorar as coisas é tão gostoso, me sinto tão inteligente por saber a declinação de 'currus', 'manus', 'domus'. Isso sim é cultura! Quando o editor ligar, perguntarei se não precisamos traduzir algo de quente da imprensa vaticana, pois eu adoraria traduzir do latim notícias pegajosas sobre a vida amorosa dos nossos burocratas sagrados, já imaginou: "Padre Schmitt admite que ama os homens" ou "O Papa Bento XVI passa bem depois de breve desinteria". Eu me divertiria, nesta cidade, eu me divertia sozinho...

Prosa:
A organização superior da vida não pode ignorar todas as atitudes humanas consideradas malignas, no sentido mais naturalizante da moral. Não será possível inventar um futuro que somente conte com a solidariedade universal e a justiça real. Nem é a competição e o egoísmo as fontes exclusivas da maldade; nem é a cooperação e o altruísmo as fontes exclusivas da bondade. A organização superior da vida humana precisa refletir e propor um modo de produção e um padrão de relação de produção e uma forma de circulação da riqueza absolutamente compreensivas, se é certo que pelo menos uma das ideologias libertárias se baseia numa dialética real que tenta construir um termo de suprassunção, negando e afirmando um modo de conceber a realidade. Todavia aprendendo com as atitudes pre-existentes, torna-se mais do que um modo de ver - torna-se um modo de unificar e filtrar as atitudes humanas e um modo de reproduzir as atitudes novas. Essa organização nem reinvindica exclusivamente a plena racionalidade, senão num sentido tão ampliado que perderia o interesse filosófico; nem rejeita a razão, porque . Para que possa nascer uma nova forma de sociedade, é preciso que ela possa errar coletivamente, é preciso que ela ceda a obstáculos, porque são os obstáculos que demonstram a existência de um caminho a percorrer.
A organização superior da vida humana é socialista em todos os detalhes e comunista em seu horizonte. E ela pode cometer erros em suas teorias, assim como pode ceder diante dos obstáculos na realidade. Contudo, pode vencer seus obstáculos e corrigir suas análises nos detalhes. E corrigir suas atitudes no geral. Se essa filosofia da práxis não for uma ética também, não será nada.
Haverá no futuro essa organização superior e haverá crime, haverá traição, haverá plágio e haverá guerra, porém não serão nossos sonhos que falharão, porque os sonhos não falham: eles sempre nos mostrarão os empecilhos, como intuições, mas nem sempre na medida correta, como ilusões.

Prosa:
Não sei se meus dentes latejam mesmo. Procuro, isso sim, meu próprio mal. Ando atrás do meu próprio mal como quem procura algo que o unifique, aquilo por força do que fazemos tudo o que fazemos; aquilo em vista de que atingimos as metas que conseguiremos atingir. Sinto meu dente, creio que ele já não doa porque meu nervo está machucado; a julgar pelo tempo decorrido, deve estar meu dente todo roído por dentro e meu nervo todo podre. Ele dói porque ele está em mim. Isso não me incomoda tanto no sentido físico quanto no moral. Essa falta imperdoável de cuidado que me remete a mim mesmo, mostra que meu mal maior é inatingível e que por ora devo me ocupar com males menores. Isso é moralmente débil e fisicamente inócuo. Não consigo mudar minhas atitudes diante de um malefício natural tão insistente.
Meu corpo e minha mente, no entanto, eles sabem o que ando buscando - que é muito grande e enorme. Quando vejo um menino, uma menina, um velho usando droga, penso imediatamente que a felicidade é o Sumo Mal, o que não implica em dizer que o objetivo da vida seja outro do que a felicidade. Não pode ser infelicidade e felicidade no mesmo sentido e ao mesmo tempo, assim mesmo como Aristóteles e Platão mandam.
Essa é a meta da vida: uma vida humana por uma felicidade coletiva. A vida é fungível e em sua fungibilidade ela é totalmente dependente das condições de seu gozo, pois é nesse sentido que o prazer nos acompanha. Essas condições são coletivas, sociais. Esses parâmetros são os limites da minha utilidade para o futuro da humanidade. O mal reside em tocar a fronteira, não em parar nesses dolores bucais, nem sucumbir diante de um anúncio apenas. Meu dente não me deixa sucumbir a mais nada, minha irmã me visita e tenta me convencer a ir ao dentista. Acho que comecei o tratamento uma vez - sim! - porque ela me emprestou dinheiro. Mais três meses e poderei ir novamente. Este mês pagarei o que lhe devo. Juro. Deste mês não passa, preciso me livrar deste simplório dolor e voltar a freqüentar lugares respeitáveis, onde o mal se vende, o mal se observa, o mal se sente. Eu dizia que a morte demonstra a fungibilidade natural da vida e seu sentido ético mais inclusivo, filosoficamente, a um tempo racional, emocional, apetitivo se chama 'felicidade': a felicidade é coletiva e determina o autoconsumo da vida individual.
Meu dente não vale 1 real! Se eu não tivesse dente, eu chupava manga e engolia os fiapos... Se eu não tivesse manga, eu engolia sal! Se eu não tivesse sal, eu engolia saliva. Minha cabeça parece que vai explodir fora adentro. Um sinal. Um machucado. Uma prova atécnica de que estou vivo. Um dente corroído é muito persuasivo, ele é um pequeno mal, meu mal: estou aqui! Não venho te curar, mas te fiz nascer e te renovo. Minha vida vale um destino mais brutal do que uma dor de dente. Minha vida vale mais sal, mais fiapo e mais manga do que uma boca cheia de dentes. Salário. O texto atrasado. O editor vai telefonar daqui a quinze minutos.

Poesia:
Isadora, não condene minha dor,
meu ridículo é solitário e infrene,
hipocondríaco, pálido e sem cor,
mulher, cardíaco, inócuo, perene;
meu sorriso te perfuma, tal flor,
aviso de vida e de água serena,
na tua pel' sedosa bate e'é plena,
mas sozinha, resseca e furta cor...

Poesia:
esse homem nesse carro não sabe quem é Bocaccio
esse homem nesse carro não sabe quem é Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Pathy Smith, Andrei Warhola, Denis Rodman, Goethe e Heine,
esse homem nesse carro não sabe quem é Paulo Leminsky, Itamar Assumpção, Alice Ruiz, Olga Benário, Clara Schumann, Emanuel Kant, Dostoievsky, Tolstói, Pushkin, Giacomo Leopardi, Pierre Bourdieu, Girault de Bornelh, Ezra Pound, Haroldo de Campos, John McEnroe e Roger Federer.
esse homem nesse carro não sabe quem é Paulo Moura, Eça de Queiróz, Schopenhauer, Hubble, Hindemith, Hobbes, Hegel, Hume, Husserl, Hall, Hill, Hurt, Hart, Hobsbawn, Hugh, Holbach, Hell, Helge, Hilfe, o Herz, o Helge, Hölle, Herman Hesse, Haas, Han,
o Helgchen
Helglein du
wenn du mich liebst,
mach dein'n Mund zu!

Flehe mit mir,
o Herzchen du,
Aber mach es zu, bitte,
bis Morgen früh!

esse homem nesse carro não sabe quem é Petrarca, Dante Alighieri, Donovan Bale, Marília Gabriela, Pagú, Lygia Clark, Clarice Lispector, Beatriz Sarlo, Simone de Beauvoir, Don Juan, Dumas, Duras, Den Xiaoping, Doré, Dork, D'Arc, Dulce Maria, Cora Coralina, Drama, Dagmar, Degmar, Digmar, Dogmar, Dugmar, Dõgmar,
Dãgmar se fores à ribeira
para lavar tuas roupas
e molhares as transcinhas
dar-me-ás um beijo, dar-mo-ás.

Dãgmar, se varres a soleira
p'ra receber teus padrinhos
e sujares os dois pés
dar-me-ás um beijo, dar-mo-ás.

Dãgmar, se sonhares a noite
que eu te violara a boca
que eu te violara o corpo
dar-me-ás a bunda, dar-ma-ás; Dharma, Derma, Dorme, Dormir, Dor, Dar, Dirimir, Difícil, Dinheiro, Donga, Dengo, Dkingo, Jingle, Jungle, Jongo, Ginga, Gongo, Gum, Gun, Gronder, Grupo, esse homem nesse carro não sabe o que é:

Dolers, hermosa mía
donde se quedó tu llanto
que tocaste con mano fría,
me puse triste, de triste canto

Dolores, hermosa mía
aún tu man' tocando
por distante, aún sonríses
me puse triste, de triste canto

Dolores, hermosa mía
a tocar, sonriendo cuando
yo lloraba tus manos frías
me puse triste
y de triste
triste
Trieste. Vim, vieste. Vinhas truísta e me traíste, truísta e traidor eu vinha. Trazias a boca cheia de intrujice e eu, de Trieste. Por isso canto. Tragödie. Trama. Trema. Trena. Truman. Louis XIV.
d'accord?
oui,
les nuages esplendides
deviennent peu à peu des échos,
comme de l'eau
suspendue des pensées;
la salive suspendue: la raison: le silence sanglant.
esse homem nesse carro não sabe quem é.

Pô Pá Pé Pu Pí

Píííííííííííííííííííííííííííííííí
Pá!

prosa:
Em tudo é preciso atacar o problema certo. Nenhum dente poderia doer tanto. Provavelmente se trata de algum outro tipo de moléstia, uma bactéria mais corrosiva a me atacar as gengivas. Quiçá alguns dias ou semanas de espera revelarão a verdadeira enfermidade que me acomete. Essa pressão no tronco cerebral que o latejar dos dentes causa não é normal. Nunca ouvi falar de nada assim. Ademais, R$200 para uma consulta ao dentista: nada deveria custar isso! Uma pressão em meu maxilar me faz refletir sobre outras formas da doença; quiçá um câncer - um cancro, como se diz em Portugal - me acometa de modo mais cruel. Perderei parte da boca, tal como Freud. O psicanalista morre pela boca; decidiu fumar charutos e tem na voz própria e na alheia o sumo instrumento de trabalho. O psicanalista morre pela garganta, fisgado pelo vício mais supérfluo e nocivo - o de baforar como uma chaminé, um trem, um forno, uma casa de campo. Eu não tenho dentes para isso, minha arcada dentária não pode ser responsabilizada por isso. Um homem que não possui meios para prover-se de bons tratamentos, deve ser deixado à míngua? O Professor usa minhas traduções como Freud usava dos charutos, como de algo supérfluo. Meu pai sempre me dizia para ter paciência e dividir as questões em partes. Mas como saber onde uma parte acaba e onde outra começa? Acho que meu maior defeito sempre foi repartir mal as coisas, tentando vencer obstáculos impossíveis por um lado e me demorando muito em outros óbices irrelevantes, por outro. Vou seguindo assim a vida, dando respostas iguais para metades desiguais dos problemas. O molar esquerdo inferior está mole: o que comi ontem? Não será possível um prato de macarrão à bolonhesa causar-me a queda de um dente... Se um ingrediente estiver podre, não poderei prová-lo.

prosa:
Saí de casa cedo hoje decidido a correr no Parque da Água Branca, que não visito faz três anos. Costumava passar diariamente por aqui durante a graduação. Gosto muito desse parque, apesar de haver corrido aqui poucas vezes. Meus dentes estão melhores. Resolvi racionar a pasta de dente, quem sabe se escovar menos o dente o verdadeiro problema não surge. Mal chegado ao Parque sinto uma pontada em minha gengiva que quase me prostra ao chão. Uma senhora educadamente me perguntou se eu estava bem. Me levantei rapidamente e dispensei seu cuidados. Após o alongamento de pernas e pescoço, outra pontada. Minha boca parece latejar inteira. Naquele momento pensava na maravilha de haver parques públicos. Passei a mão pelo maxilar esquerdo e o pressionei levemente, algo está surgindo ali. Tenho para mim como algo certo minha recuperação, meu corpo está começando a reagir. E a florescer provavelmente. Sinto que estou na flor da idade e do vigor, faltando-me apenas os recursos ou a iniciativa para ajustar minha existência às minhas expectativas.
Correr não é definitivamente minha atividade favorita. Insisti porque pareceria estúpido alongar-se por dez minutos e correr por três somente. Corri como nunca, tentei esquecer as dores de dente. Sem sucesso. Corri muito e em certos momentos sentia a cabeça latejar e o suor escorrer pelas cãs e pelo queixo, como se eu estivesse numa maratona de fim de ano. Foram apenas quinze ou vinte minutos, no máximo. Sentei ao fim, alonguei-me rapidamente, o Sol estava capadociano, lunar, deitei-me ao banco. Fechei os olhos, a boca. Tudo explodia e estava vivo, revolto, cheiro de sangue, como num ferimento que se aproxima das narinas por engano. Saliva. Língua prensada contra a bochecha. Olhícerrado dormitei e sonhei que estava em casa. Uma criança bateu em minha testa - peste do inferno - e acordei desesperado. Percebi que babava um pouco, ou seja, eu dormira talvez uma hora inteira naquela posição. Uma hora inteira deitado ao Sol das dez horas e estou muito melhor. Enxaqueca leve. Ou hipocondria. Raramente sou acometido por enxaquecas, elas normalmente me indicam algo mais grave. Ou não. Estou confuso e acho que o exercício deve ter me feito muito mal. Gostaria de tomar um café neste exato momento e sentir o cafe jorrar contra meu dente como uma onda quente e escura no mar de sangue de minha boca. Correção: todas as bocas estão cheias de sangue, não desejo dar a entender que minha dor é maior do que qualquer outra. Inclusive me parece normal - e natural - que a boca incomode um pouco sempre, afinal a estamos usando ininterruptamente. Aparentemente coisas entram na boca, germes e bactérias, através da comida. Mas isso não me preocupa muito. O que me preocupa neste momento, de verdade, é a oscilação no preço do café.

Prosa:
ninguém morreria se houvesse árvores nos estacionamentos públicos e privados.
ninguém morreria se houvesse uma árvore à altura do número 848 da Rua Aurora.
ninguém morreria se a Praça da República se tornasse um Parque com as ruas Barão de Itapetininga, 24 de Maio, metade da Avenida Ipiranga e se juntasse ao Vale do Anhangabaú.
ninguém morreria se a Livraria Martins Fontes da Praça do Patriarca tomasse todo o prédio, se a estátua do Patriarca fosse refeita, porque aquela é uma das mais feias esculturas do Universo conhecido, se houvesse um centro cultural em homenagem permanente à Semana de 22 na Rua Aurora, onde nasceu Mário de Andrade, se houvesse um parque e clube públicos a cada 100 mil habitantes.
ninguém morreria se esta cidade fosse infinita, ao invés de infinita.

Prosa:
Beber. Beber. Beber. Esta é minha medida. Vamos ao próximo bar, onde houver cerveja ou cachaça ou qualquer bebida alcoólica. Lá hemos de ficar. No boteco, onde a conversa corre fluida e ninguém se entende, porque ninguém precisa se entender. Quem precisa me entender são os sóbrios, esse inúteis. Almas penadas. Ninguém precisa se entender quando bebe, por isso se bebe, para o mundo se entender um pouco menos. E menos se preocupar. Beber e beber e beber até meus dentes explodirem contra o vidro do copo, até minha garganta arder e até meu cérebro congelar. Beber e ter ressaca, até a ressaca passar. Dormir como quem nunca fosse pregar os olhos. E, no entanto, dormir como um bebê do inferno. Queimando. Queimando. Beber e beber e beber. Um boteco é pouco. O dinheiro é pouco. Vinte e quatro horas são pouco. Uma semana. Um mês. Uma boca. Tudo é pouco perto desse desejo de falar e engolir e falar e engolir e falar e engolir e beber e beber e beber. Um dente caído e latejando. Um dente explosivo incomodando. Os outros dizem várias coisas. Enganos. Estou sozinho na mesa do bar. Mas escutando o que os demais dizem. Sempre. Enganos. Eu não escuto nada. Rindo. Estou rindo. Beber e beber e beber. Give me women, wine and snuff untill i cry out "hold enough!"... eu estou rindo finalmente! A dor passou! A leveza. A dor passou. Give me more! Gimme more. Tell me more. Este dente. Este pequeno insignificante dente. Este pequeno explosivo traque! Beber e beber e beber até a ressaca chegar e cair até ela passar e beber e falar e engolir. Estou rindo! Atento a tudo. Atento... Sentidos aguçados. O quê? Acho que falei alto. Estou uma merda já. Ótimo. Bêbado. Rindo. Rindo. Sem compreender uma palavra de português: give snuff give me snuff!
Untill I cry out "hold enough!"

Poesia:
a indústria nunca me deu atenção, o que foi uma benção.
a indústria nunca me deu atenção, o que foi uma pena.
a indústria nunca me deu atenção, o que foi uma delícia.
a indústria nunca me deu atenção, o que foi um despropósito.
a indústria ignorou o que fiz, o que era de se esperar.
a indústria ignorou o que fiz, o que era surpreendente.
a indústria ignorou o que fui, por isso ninguém me conhece.
a indústria ignorou o que fui, por isso me tornei famoso.
a indústria não consegue mais atingir a todos: ela enfraqueceu demais.
a indústria não consegue mais atingir a todos: ela se fortaleceu demais.
a indústria jamais me dará voz, o que considero ruim.
a indústria jamais me dará voz, o que considero bom.

Prosa:
Terminei a tradução de mais uma obra que considero uma pequena pérola da literatura francesa: "O Ladrão de Casaca" de Arsène Lupin. Traduzir do francês é uma tarefa relativamente fácil hoje em dia. Com sorte consigo publicar essa tradução em alguma edição de bolso até o fim do ano. E até o fim do ano terei o que comer. A proprietária do apartamento está me pressionando. Mas não me deixo abater. Meu dente, a seu modo, também tenta chamar minha atenção. Passando a língua acabei encontrando nele uma fissura, na coroa. Definitivamente não sei o que fazer. Minha mãe não atende mais aos meus telefonemas; muito menos meu padrasto. Me sinto terrivelmente só. Meus irmãos acabaram de entrar na faculdade. Papai está no Equador há dezoito anos. Quando conversamos, parece que estou em uma convenção da ONU: papai pronuncia o português como um estadunidense e fala basicamente em espanhol comigo. Não nos entendemos bem faz algum tempo. E não tenho coragem de lhe pedir dinheiro. Minha senhoria não se importa com minhas dificuldades de comunicação e acredito, objetivamente, que a razão lhe assista de alguma maneira. Acontece que eu quero que a razão se foda às vezes. Meu dente não se resolve. Finalmente o Sebá me telefonou oferecendo uma tradução do espanhol e uma baladinha, como convidado. Trae solo unas lachiñas, Bebe, foi o que ele disse. Me chama de "Bébe", que era como a Palu, minha ex-namorada, me chamava. Não poderia nunca visitá-lo, dada a minha saúde financeira. Relutei, estava preguiçoso. Porém cedi ao fim e lhe prometi me esforçar. Preciso mesmo de entretenimento e de alguma estupidez; de alguma estupidez que não parta de mim mesmo. Uma estupidez objetiva, coletiva, sem culpas. Fui ao boteco e perguntei quanto eu devia ao patrão. O balconista remexeu uma pilha de papéis impacientemente, enquanto isso peguei seis latinhas no freezer. Quando ele chegou a fazer a conta - que certamente não estava completa - lancei-lhe o pedido rápido para que anotasse mais seis latinhas. Assim vou vivendo. Se tiver sorte, haverá petiscos, amendoins, pães, patês. Eu sonho com patês de azeitona. Na pior das hipóteses, requeijão e manteiga me satisfazem. Sebá é um chileno que se afeiçoou a mim assim sem motivo. Como um gato perambulando. Veio a São Paulo começar um doutorado sobre vanguardas literárias latinoamericanas; deu-se muito bem em pouco tempo; de tradutor, passou a editor em uma casa editorial; passou algumas traduções - as que considera mais técnicas, pois segundo ele eu sou um jornalista técnico, seja lá o que isso queira dizer - "tu lo haces sin firula, Roberto". Sebá também gosta de mim obviamente porque pensava que eu fosse gay como ele. Me acariciava a mão, lançava olhares, tentava me abraçar espontaneamente. Ele é um cara legal. Mas eu 'tô em outra. Minha preocupação é com este dente e estas contas. Mas vejam bem, eu não tenho nenhum problema com isso, preciso mesmo de carinho. Companhia é bom e tal. Mas o resto prefiro fazer com uma mulher, não sei, prefiro, fui criado assim. Não me gabo em dizer que nunca tive experiências homossexuais. Achei bacana. Mas depois enjoei. Sebá não conhece essa parte da minha história, se não não saía mais de casa. Ele ficou de fato apaixonado por mim durante um tempo. Não pude fazer nada: somos bons amigos. A festa será na casa da Aninha, lá em Perdizes. Ela é psicóloga e tarada por Neruda e viciada em trilhas de bicicleta. Ela, o Sebá e o Tarantino, o atual namorado do chileno, vão para cima e para baixo juntos nos fins de semana. Fazem mais coisas juntos, até onde sei. Preciso me planejar para chegar a tempo. Vejamos: não posso gastar meu dinheiro com a condução. Vou a pé. E preciso tomar banho.

Poesia:
me dê cinco reais, dois reais, um real; farei deles delícias. O crack faz delícias por mim. Aqui na Rua Helvétia niguém acredita que eu seja tradutor. Começo a declamar Heine e a dizer frases simples em russo. Chamam-me "demônio". Eles piram com minha cultura e desenvoltura. Nem imaginam que os desprezo. Pensam que eu sou um deles. Eu fumo muito crack mesmo, porque a droga melhora minha percepção. Antes eu me preocupava com um monte de coisas. Agora me sinto livre. Livre para dormir na rua. Livre para beber água na Praça da Sé. Livre para não pagar nenhuma conta. Eu me surpreendo com a quantidade de pessoas na Rua Helvétia. A negociação da droga me preocupa e me tira o sono. Não que eu tenha medo da polícia, que nos bate regularmente - estamos acostumados - de modo que temos calos e feridas sempre prestes a justificar o cachimbo. Eles me pedem para falar em francês, tarefa assaz fácil e simples. Digo-lhes que são vermes e que deveriam estar mortos. Digo-lhes que mijaria em suas caras e camas. Me agradecem. Não me importo com a mentira. Contanto que eu possa demonstrar minha superioridade. Gosto de viver entre os usuários de crack. Entre eles não preciso disputar nenhuma posição. Sou um merda completo. O "demônio" dizem. Gosto da denominação. À noite, sob uma ponte qualquer, quando me pedem para contar alguma história de monstros, reconto o "Fausto" modificando o que me parece de difícil compreensão para os animais que tenho à frente. Digo que Fausto vendeu a alma. Eles acham ótimo. Se identificam imediatamente. Digo que o demônio é como o crack, que ele suga a pessoa até a medula do osso. Eles não sabem o que um contrato significa - a não se aqueles que já tiveram carteira de trabalho assinada - e perco em geral de cinco a dez minutos para lhes dizer que Fausto se dedicava à ciência, à jurisprudência, à leitura, à teologia. Nunca ouviram falar de nada. Mas para mim é divertido. Me sinto útil e superior, o que é proveitoso. Duplamente. Habe nun ach! Eu grito na Praça da Sé e o grito soa como uma estupidez de um usuário de crack. Eu grito um verso da Ilíada e soo como uma excrescência . Onde quer que eu vá somente o cachimbo me consola. Tenho a boca torta. Porém já estou esperto. Meus lábios estão secos. Todos me olham como se eu lhes quisesse roubar a alma. Digo coisas em francês e inglês. Me sinto idiota. Pronuncio coisas de Camões e de Quevedo que lhes soam bíblicas. Defendem-se com um ar religioso. Me observam como bichos incomodados e cuidadosos. Alguns me ignoram - estão muito ocupados com seus cachimbos deliciosos - e ressabiados esquecem que conhecem o próprio português. Os desprezo com a maior sinceridade possível. O crack é um prazer indescritível. Fico pensando nas pedras, sonhando acordado, nas pedras queimando e ardendo calmamente em meu cachimbo improvisado: não existe pressa no mundo do vício, somente júbilo. Eu trouxe na mochila dois celulares e um videogame, quando finalmente decidi abandonar meu apartamento. Meu dente doía muito. Agora já não tenho e não me custou nada. Foi um namoradinho do Sebá quem me deu minha primeira pedrinha; ele é semiprostituído, por assim dizer, e goza de um duplo status social - ontológico - transitando entre o inferno dos ricos e o inferno dos pobres como um Odisseu clubber. Admito que o rapaz é bonito. Mas acabou desgraçando a vida do Sebá. É briguento e ciumento; já freqüentou aulas de teatro e hoje participa como figurante em pecinhas, filmes e comercias - ah... como ele gosta de dizê-lo - além, claro, de ter amantes poderosos e de - nas palavras do próprio chileno - "quebrar tudo na cama". Pois bem. Vendi tudo e tenho muitas e maravilhosas pedrinhas comigo. Meu cachimbo eu não vendi. Nunca, isso ainda me diferencia dos demais. Os livros não me renderam muito para o vício. Tive de vender algumas coisas a preço de banana num sebo da Avenida Rio Branco. Mas meu "Great Expectations" não vendo; nem os "Alcools" do Apollinaire. O resto venderei à medida que precise de mais dinheiro. Habe nun ach! Há há há há... Quem sabe fumar pedras, amigo, não carece mais nem dos mortos nem dos vivos. Ando pensando: tratar com pedras, falar com elas. Existe algo de profundamente telúrico nas drogas - e profético - enquanto pedra, pasta, pó, cinza, fagulha. São estados do magma, meus caros! São tributários do fogo! Não consigo imaginar por que os gregos não viram em Hephaistos também o inventor dos narcóticos. Daquela oficina uma invenção tão maravilhosa deve haver saído. Eu gostaria mesmo de me aventurar num laboratório vulcânicos desses; malhar a poeira; bater a cinza; queimar a fibra; empacotar a pasta; cortar a pedra, afiá-la, moê-la, juntá-la. Eu pensando essas coisas enquanto alguém vomita ao meu lado.

Poesia
Todos os meus esforços são uma gota tépida
de água suja no lodo imundo do inferno;
me sinto puro ao pisar os rincões pobres
e inteligente ao me dedicar aos ignorantes.
Sou de uma utilidade infame para inválidos.
Quero ser sublime destruindo-os a todos
seus sonhos de grandezas e de timidezas,
trazer um pouco da realidade, sobrepô-la
como um sopro de ar no tufão de violência.
Preciso vos devolver a culpa que mereceis.

Prosa
Somente o capital se inscreve nesta cidade. A história não se inscreve. A cultura não se inscreve. O capital tem todos os direitos. Suas são as ruas, as avenidas, os canteiros, as casas, os muros, os carros, os viadutos. Tudo é dele nesta cidade infinita. Infinita como o capital. Expansiva, calcinante. Paradoxal, somente aquilo que é dejeto nela se inscreve como subproduto permanente: mendigos, lixo, estacionamentos, favelas.

Prosa
Em Florença me disseram que, no período áureo econômico-cultural da cidade, as famílias construíam torres como um sinal público de prosperidade "clânica"... 400 anos depois, em São Paulo, morando na torre (14º andar) vejo torres somente no meu horizonte. E a competição continua. De cimento (pedra perpedrada) se faz o mundo em São-Paulo-do-Rio-Tamanduateí. Obeliscos, torres, totens. Água para dar liga no concreto e carregar lixo, fogo para vergar vigas e queimar as pólvoras, chão de dormir mendigo e usuário de crack. Ar para secar mucosa. E o quinto elemento, o semidivino, semi-onipresente, o que tudo envolve, tudo abraça, tudo entope: a majestade, o papelão.

Prosa
Falar mal do PT, falar mal da Dilma, que é puta, que é vagabunda, que é ladra, que é burra, falar mal de comunista, prometer matar bandido, prometer linchar pobre que ocupa terra vazia, jurar por Deus que é honesto, jurar por Deus que a corrupção começou com o PT, rir de quem discorda, xingar o Sakamoto e o Jean Willys, ironizar quem defende pobre-preto-LGBTT-índio-cigano-refugiado, falar bem da Ditadura, defender o mercado, defender os carros, defender os Estados Unidos da América, odiar a Argentina sem motivo, ter dinheiro e pagar quem faça todas as coisas anteriores dá certo neste país. Não me perguntem nada, mas dá certo. Não sei como. Dá certo. Eu não sei nada deste país e dessas pessoas. Não me perguntem quem eles são. Eles vem e riem, xingam, falam, humilham. Eles vem e vencem. Só. Mas por quê? Não me perguntem nada.

Prosa
Eu olhava a chusma encantada e vendedora, passando daqui ali e dali aqui. Finalmente a saia ficou bem justa em mim, como eu queria, com minhas calças jeans bem puídas, minha sandália rasteira. "Por um dia" ela disse, "por um dia você usa as minhas roupas e eu as suas, estou com frio". Comecei a me agitar como uma cheer leader. Me lembrei do meu intercâmbio no Colorado, com uma família mórmon plantadora de repolho; as pessoas sabem que sou tradutor, algumas me chamam assim, "O Tradutor". É importante ter um desses no meio do burburinho; quando vem gringo comprar a pedra, argentino, boliviano, francês, alemão, australiano. "Chama o Tradutor". Mas hoje tenho outras coisas na cabeça, maldades:
Me dê um C
Me dê um R
Me dê um A
Me dê um C
Me dê um K
CRACKÊ-CRACKÊ!
(som de palmas, tambores improvisados, batidas de garrafas PET)
CRACKÊ-CRACKÊ!
Nosso coro é o mais forte na rua, ninguém pode conosco, nem esses imigrantes - pobres diabos - que nos olham com nojo e lascívia, não sei existe uma delícia em se encontrar um antípoda, um júbilo de se estar no lugar firme e certo. Treinei madrugada adentro com meus asseclas, temos uma soprano de timbre claro e potente, um baixo clangoroso e escaldante, eu faço um baixo esganiçado e sem volume. O bolerinho de minha namorada, minha Dulcineia, aperta meu peito. É por isso que a voz não fica boa. Temos um pianista formado na Unesp como maestro. Nosso ritmo é forte, pulsamos o pé, calcamos o asfalto e nos sentimos por um milésimo de segundo conectados aos Campos Elíseos, o mundo é belo! O futuro é brilhante! Nossos dentes, nem tanto, nossas cáries, nem tanto, mas quem se importa com os dentes, quando a pedra e a fumaça são o único caminho, a única vida, o único sentido. De que serve a porra dos dentes diante das pedras e da fumaça?
Ensaiamos uma madrugada, embalados pelo frio outono, alguns cachimbos bem calibrados, corotes de pinga ardida e barata, nossa coreografia, que era uma imitação vagabunda e despensada de um vídeo que vimos em um computador roubado, com referências que cada um trazia na bagagem - o samba, o Lago dos Cisnes, a capoeira, o karatê, o break.

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